No mundo pós-cristão em que vivemos, a discussão sobre o mal tem um odor anacrónico, tal como a invocação do diabo. Hannah Arendt foi talvez quem mais chamou a atenção para o problema do mal,
sublinhando a sua importância na compreensão dos regimes totalitários do século
XX, nomeadamente o nazismo e o regime soviético. A “banalidade do mal” foi a expressão
que utilizou ao analisar Eichmann e outros oficiais nazis, muitos deles
bons pais, assalariados comuns, cumpridores maquinais de ordens, mas que, segundo Arendt, eram pessoas essencialmente estúpidas, vulgares; numa palavra,
banais. A intuição de Arendt foi muito importante e reveladora. É claro que esta ideia continua
a ser muito difícil de engolir por psicólogos, sociólogos e historiadores. O
mal é do domínio da metafísica e não encaixa em modelos racionais. E, no entanto, o mal existe.
Desculpem lá estes preliminares, mas
parecem-me apropriados para falar de um filme perturbante.
Refiro-me a We Need to Talk About Kevin (Temos
de falar sobre Kevin) que estreou esta semana nas salas de cinema em Portugal.
Como refere Jorge
Leitão Ramos no Expresso, “É o mais radical filme sobre educação que me lembro
de ter visto”. É desesperante assistir à impotência de uma mãe (uma soberba
Tilda Swinton) para educar o filho, filho que desde o nascimento parece ter como
única missão na terra infernizar-lhe a vida, enquanto o pai ternurento nunca chega
a perceber o que se passa à sua volta.
Não são
apresentadas explicações para a crescente monstruosidade de kevin, que descamba
numa cena de terror - felizmente, a realizadora teve o bom senso de nos poupar aos
pormenores. A comunidade responsabiliza a mãe pela monstruosidade do filho, uma
culpa que ela resignadamente carrega, sem nunca deixar de o amar incondicionalmente.
O que falhou? Não sabemos. E é isso que perturba.
Há anos vi uma
reportagem sobre um jovem americano que matou vários colegas do liceu. Percebemos
que o jovem homicida era aparentemente como os outros, sem nenhum trauma
especial. Às tantas, a mãe diz uma coisa terrível: “o meu filho sempre foi mau”.
Ficou-me registado o ar incrédulo e atrapalhado da jornalista que a
entrevistava. Não contava com uma resposta daquelas, queria saber os porquês, e
com certeza era mais uma vítima da crença rousseana do “bom selvagem”.
O mal existe e o
mundo está infestado de demónios. Vade retro,
Satana!
O que queres dizer com "mundo pós-cristão"?
ResponderEliminarRefiro-me à descristinização do mundo ocidental, que se traduz na perda de influência da igreja na sociedade, na diminuição do número de crentes, de praticantes. "Deus está morto", declarou, angustiadamente, o ateu Nietzsche há mais de um século.
ResponderEliminarApresentas isso como se fosse um facto. É mesmo assim? Aplica-se igualmente aos EUA?
ResponderEliminarO caso dos EUA é de facto diferente. O número de praticantes é muito maior. Não tenho agora aqui à mão dados, mas penso que o número de pessoas que vai pelo menso uma vez à missa por semana ronda os 60%. Curiosamente, já vi uma explicação económica para essa diferença entre a Europa e os EUA. na Europa, há uma situação de quase monopólio (a igraja católica e o vaticano) enquanto nos EUA há uma concorrência feroz entre várias igrajas na disputa pelos crentes, o que as leva a campanhas bastantes agressivas de comunicação. Os chefes da igreja são grandes comunicadores, habituados a utilizar os mass media. E as liturgias têm pouco a ver com as nossas missas, parecem mais movimentos de auto-ajuda e motivação.
ResponderEliminar"Refiro-me à descristinização do mundo ocidental, que se traduz na perda de influência da igreja na sociedade, na diminuição do número de crentes, de praticantes. "Deus está morto", declarou, angustiadamente, o ateu Nietzsche há mais de um século."
ResponderEliminar.
então está explicado o declinio da Europa...
José Carlos Alexandre,
ResponderEliminarA sondagem da Gallup é uma boa referência:
http://www.gallup.com/poll/1690/religion.aspx
Nos EUA, o fenómeno que descreve - em termos empíricos: indivíduos que se declaram ateus, participação em cerimónias religiosas, etc. - também existe. Embora num grau muito menor do que na Europa; é um declínio extremamente suave.
Pessoalmente, creio que estes números subestimam o que o JCA designa por "descristinização do mundo ocidental" nos USA. O sucesso dessas igrejas protestantes evangélicas carismáticas deve-se à agressividade no proseletismo e à inovação no uso de ferramentas de comunicação de massas? Sem dúvida. Billy Graham e Jerry Falwell sabiam como vender. Mas o que verdadeiramente importa: sabiam o que vender. Nos modernos movimentos evangélicos, não são apenas as liturgias que parecem mais movimentos de auto-ajuda e motivação. A doutrina e a teologia também o são. O que eles ofereceram foi um cristianismo que vai de encontro ao zeitgeist moral vigente, ao pluralismo típico das sociedades seculares modernas. É um cristianismo muito macio, muito pouco dogmático - em que o único dogma é tudo - quase tudo - entender e tolerar (como, de resto, as igrejas protestantes mainline). Pouco tem a ver com as tradições de ascetismo e pureza doutrinal - e a violência retórica - típica dos evangélicos do início do século passado. Isto poderá mascarar a "descristianização" da sociedade norte-americana - as pessoas mantiveram-se cristãs porque disponham de versões menos religiosas do cristianismo. Há um excelente livro que aborda este assunto (embora não exactamente a minha tese, que, de resto, é apenas uma impressão pessoal e superficial): American Evangelicalism, Conservative Religion and the Quandary of Modernity do James Hunter.
Aliás, visto que mencionou a Arendt, ela toca obliquamente este assunto numa entrevista à Partisan Review (publicada no Critical Essays). Ela diz que não deveremos sobrestimar a importância do revivalismo religioso - o que estaria a acontecer ao tempo da entrevista, pelos anos 50/60 (quando o Billy Graham fazia capa da Time). Que não é expectável que o declínio da religiosidade na cultura ocidental aconteça de forma linear. Mas que o essencial, de uma perspectiva histórica, é o declínio das crenças cristãs - a Trindade, o Inferno, o Juízo Final - e da vivência religiosa - casamento e divórcio, a confissão regular - nas sociedades ocidentais.
Ou seja, talvez o caso dos USA pareça muito mais diferente do que realmente é.
Ah, o filme. Distraí-me.
ResponderEliminarConcordo. A existência do Mal como algo humano e não emanação ectoplasmática ou que chega cá via meteoritos, é - ou deveria ser - um dos grandes temas da arte. Raramente bem tratado. Este filme fá-lo de forma soberba. Eu quero acreditar que a razão pela qual somos poupados a imagens de violência e terror - para lá de simbolimos como a da tomatina - tem um significado moral e estético. O mal existe e o mundo está infestado de demónios, como escreve o JCA? Pior: o mal, e os demónios, estão dentro de cada um de nós - os massacres sanguinários, como as guerras, são apenas adereços; é nas pessoas que está a mais violenta das batalhas. A que travamos com os nossos demónios; e em que frequentemente a educação é fraca aliada.
Não sabemos, como não o sabe a Tilda Swinton, o que falhou. Esse incapacidade de saber - que é comum a todas as mães quando dão à luz - é aterrorizadora. É um filme bestial. Altamente recomendado.
Agradeço-lhe os comentários. Isto, felizmente, acontece com alguma frequência: os comentários de alguns leitores são melhores do que os meus posts.
ResponderEliminar"então está explicado o declinio da Europa..."
ResponderEliminarEsta ideia é bastante interessante e merece uma reflexão séria. É bem possível que a descristinazação tenha uma ligação com a decadência do ocidente, nomeadamente em termos económicos. max Weber em a Ética Protestante do capitalismo foi, penso eu, a chamar a atenção para a importãncia do cristianismo (ou, mais exactamente, no protestantismo) no desenvolvimento do capitalismo, devido a valores que lhe estavam associados como a ética do trabalho, a frugalidade, a honestidade, a confiança, valores sem os quais o sistema capitalista não funciona. É, sem dúvida, um tema importante.
Se o mundo que está em ascensão e ameaça tomar o poder hegemónico do ocidente não for cristão esta tese é um pouco rebuscada, não?
EliminarLuís, penso que te referes à China. Há um fenómeno que tem passado despercebido: o número de cristãoes na China não tem parado de aumentar e uma grande parte dos maiores empresários chineses são cristãos. Mais tarde, quando tiver um bocadito de tempo, vou verificar o número de cristão chineses - que já são muitos milhões.
ResponderEliminarO André apresenta alguns dados aqui: http://oinsurgente.org/2012/05/08/o-crescimento-do-cristianismo-na-china/
ResponderEliminarObrigado pelos dados - batem certo com as minhas fontes. Voltando ao Max Weber e á ligação que ele estabeleceu entre capitalismo e protestantismo - o seu famoso livro A Ética protestante e o espírito do capitalismo foi publicado pela primeria vez, salvo erro, em 1904. Há muitas críticas ao livro e algumas com sentido. A verdade é que o homem também se pôs a jeito, nomeadamente nas coisas muito pouco simpáticas (para não dizer pior) que disse sobre os judeus. Geralmente, quando se pretende desvalorizar os seus argumentos aponta-se aquela que é talvez a sua maior falha de previsão: ele considerou que o Japão não se poderia transformar num país rico e capitalista. De qualquer maneira, mesmo com todos esses descontos, parece-me que há um fundo de verdade na sua teoria. A ética do trabalho, a frugalidade, a honestidade, a confiança são ou não valores essenciais para o funcionamento do sistema?
ResponderEliminar"A ética do trabalho, a frugalidade, a honestidade, a confiança são ou não valores essenciais para o funcionamento do sistema?"
ResponderEliminarConheces algum estudo que conclua que esses atributos são mais típicos dos cristãos do que dos ateus? Lembro-me em tempos de ler um, para os EUA, que mostrava que entre a população prisional a percentagem de ateus e agnósticos era muito inferior à da população geral. Conheces algum que vá nesse sentido que tu apontas?
Há muitos estudos sobre a conexão entre religião e crescimento económico. Há estudos que mostram que os protestantes revelam níveis invulgarmente elevados de confiança mútua, uma condição importante para o desenvolvimento de redes de crédito eficientes.
ResponderEliminarO Max Weber acabou de escrever o livro depois de uma estadia nos EUA e foi aí que supostamente lhe deu o clique, quando, espantado com o dinamismo do país - até a industrializada Alemanha lhe parecia, por comparação, uma pasmaceira - viu que havia igrejas (essencialmente protestantes) por todo o lado.
Bem, mas não foi isto que perguntaste. Vejo que não questionas a importância daqueles valores na eficiência do capitalismo. Sinceramente não te sei responder. O problema é que não sabemos como seria um mundo só com ateus ou agnósticos como agora se diz. Isso nunca existiu. Até os actuais ateus (ocidentais)são de alguma forma tributários da moral cristã e, portanto, não sabemos como seriam se tivessem nascido num mundo onde essa moral já estivesse enterrada e esquecida de vez. O ateu Nietzsche estava convencido de que sem Deus o Homem deixaria e ter uma fonte moral alternativa e, portanto, a humanidade estaria perdida. Deus queira que ele esteja enganado.
Amigos,
ResponderEliminarEntão agora o problema é "o diabo"? Caramba...
Sem querer ser maldoso, deixaria estas reflexões "profundas" sobre os rumos da civilização e cultura ocidentais para quem de facto as conhece profundamente e se dedica ao seu estudo. Lembro-me que o meu filho mais velho, quando andava entusiasmado com o sétimo ano de filosofia, inventava imperativos categóricos e leis universais todas as semanas. Pueris, evidentemente, tal como esta entrada...
Mas vós sois académicos, trabalhadores intelectuais do Estado, logo protagonistas do espírito de progresso iniciado com Abril! Encarnais os padrões de rigor que, no momento presente, separam águas e distinguem o científico da mera opinião afoita. Temo pois que entradas como esta turvem águas, minando o papel pedagógico do ensino superior e dando o flanco ao elitismo saudosista que ainda abunda neste País.
Com os meus respeitos,
Jaime Carvalhosa
Quando estava nos EUA muitas vezes me perguntavam se eu era católico. De alguma forma havia bastantes traços da minha personalidade que lhes lembrava o catolicismo. Eu respindia sempre que era ateu (ou agnóstico, dependendo de ter acordado bem ou mal disposto), mas que era culturalmente católico. Isto para te dizer que obviamente os ateus ocidentais são tributários da sua cultura cristã. Noutros países, nem teriam a opção de serem ateus.
ResponderEliminarMas estas relações de causalidade levantam-me muitas dúvidas. Um dia destes faço um estudo a mostrar que quanto mais ateus, maisvdesenvolvido é o país.
"Um dia destes faço um estudo a mostrar que quanto mais ateus, maisvdesenvolvido é o país."
EliminarO Luis não seria o primeiro ateu a partir da resposta para elaborar o estudo que a justifique. Talvez até essa seja mesmo uma das técnicas mais comuns do ateísmo "científico" contemporâneo.
Caro jaime Carvalhosa
ResponderEliminarO blog não é nenhum fórum científico, é um espaço livre de opinião e, se quiser, de divagação. Os posts têm a ver sobretudo com a minha visão do mundo, com os meus gostos e preferências pessoais, etc. Era o que mais faltava se sempre que desse uma opinião tivesse de estar precupado em apresentar confirmações empíricas. Isso seria até uma forma de condicionar a opinião,contrariando, isso sim, o espírito de Abril. Todavia neste caso concreto (conexão entre religião e capitalismo), há imensos estudos sobre isso e já li alguns e, portanto, não estou a falar no ar.