Os orçamentos definem prioridades positivas e negativas. Em 2014, a ciência foi eleita como uma das principais prioridades negativas do actual Governo. O corte de 40% no número de bolsas atribuídas pela FCT é muito superior à descida de 2% na despesa corrente prevista no orçamento de 2014.
Neste caso a ideia de que tem de haver cortes em todo o lado não é válida. Em 2014, se o Governo cumprir o orçamento, a despesa corrente primária será 3,8% menor do que a registada em 2011. Os cortes no acesso à investigação são muito superiores. Comparando com 2011, o número de novas bolsas de doutoramento atribuídas em 2014 será 50% menor, e de pós-doutoramento 66% menor, do que os valores de 2011.
Não há ciência sem cientistas. Não há volta a dar a estes números. Estes revelam uma estratégia de médio prazo de forte desinvestimento na ciência, e juntam-se a cortes nos orçamentos das universidades também acima da média de redução da despesa corrente.
Cortes tão acima da média reflectem uma escolha. Uma decisão política. Uma prioridade negativa. Prioridade que se vai reflectir de forma brutal na evolução da capacidade científica e de inovação do país, e que se está já a reflectir num acentuar da fuga de cérebros exactamente entre os mais qualificados dos qualificados, isto é, os doutorados.
O caso é ainda pior, pois ao mesmo tempo que faz cortes, o Governo alterou as regras, aumentou a burocracia, acentuou os gastos em avaliações, cujos próprios avaliadores defendem fazer cada vez menos sentido face a taxas de aprovação ridiculamente baixas.
A importância desta questão excede em muito o meio académico e científico.
Esta decisão define claramente uma linha estratégica de desenvolvimento. Uma linha em que em vez de se apontar para um reforço da competitividade pelo reforço da capacidade de inovação do país, se despreza este factor chave para a evolução da produtividade, deixando o país entregue à triste alternativa de ser competitivo apenas com base no controlo dos custos salariais.
Esta opção é assim consistente com a política de baixos salários, já não como um dos pilares, mas como o pilar único de competitividade do país.
A opção pela redução do investimento em ciência a níveis muito superiores aos da redução geral da despesa é também uma opção ideológica. Parte da ideia de que o Estado não tem nenhum papel a desempenhar no desenvolvimento económico, assente numa visão de que o crescimento é apenas feito pelas empresas.
Esta não tem sido a visão da generalidade dos países da União Europeia, nem a dos Estado Unidos, onde os apoios públicos à investigação são até superiores aos europeus, nem tão pouco a dos países que apresentaram maiores saltos de desenvolvimento, como a Coreia, Taiwan ou a Malásia. Nestes países considera-se que o Estado, pelo reforço das qualificações e apoio à ciência e inovação, teve um papel determinante para o crescimento.
Muito do potencial científico desenvolvido nos últimos anos vai acabar por sair do país. Outros países vão beneficiar do nosso investimento, e da criatividade e capacidade destes portugueses.
Este era o momento de colocar esses recursos e capacidade científica a gerar mais produção e competitividade. E já há muitos exemplos de inovações que fizeram o caminho da investigação das universidades para o mercado, bem como um número crescente de projectos empresariais saídos das universidades.
Em que medida perder recursos humanos altamente qualificados e reduzir a capacidade de inovação pode ajudar o país a ter maior capacidade para honrar as suas dívidas?
Como é que a Troika aceita que a redução da despesa seja mais acentuada em áreas que comprometem o crescimento económico? Como pode aceitar uma política tão contraditória com a estratégia 2020, em que a Comissão Europeia coloca a inovação como um factor chave para o desenvolvimento e estabelece metas claras para o aumento do investimento em ciência e inovação em percentagem do PIB.
Este silêncio da Troika, contrasta com o empenho que colocou nas necessárias reformas no mercado laboral. Este empenho no reforço da competitividade pela reforma laboral, em simultâneo com o ignorar das opções do Governo na ciência apontam para uma visão ideológica da própria Troika sobre o modelo de desenvolvimento para Portugal. Uma escolha, em que o modelo de desenvolvimento do país é diferente do que estas instituições defendem para os países da UE.
Ao não se pronunciar, a Troika está assim a defender, ou no mínimo a negligentemente aceitar, que Portugal deve ter um modelo de desenvolvimento terceiro mundista. Quem é que a mandatou para isso? E em que medida isso pode contribuir para a solvabilidade do país?
Os erros e omissões da Troika não devem servir para desculpar as escolhas políticas do Governo. A escolha de andar para trás na ciência e inovação, que o actual Governo fez, é clara. É um desperdício de um investimento e uma perda de recursos valiosos, que vai limitar o crescimento económico futuro. É uma escolha que devia envergonhar Nuno Crato e Pires de Lima.
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