Por uma vez, peço autorização à casa para escrever a sério e sem ponta de ironia - esse recurso estilístico fica para o post seguinte.
A blogosfera tem debatido a praxe nas universidades e, embora com argumentos e pontos de vista diferentes, tem sido quase consensual a opinião de que a praxe é descabida no ambiente académico. Neste debate, saliento os quatro textos seguintes.
João Taborda da Gama considera que a culpa é, por antinomia halbwachsiana, da nossa amnésia colectiva.
Mário Amorim Lopes, num texto weberiano, destaca a praxe como reflexo da cultura portuguesa.
Filipe Faria distingue de forma muito justa a tradição e o mérito.
Manuel Cabral, aqui mesmo no DDD, explica o erro de associar a praxe à integração na vida universitária.
Numa resposta mais pessoal a João Taborda da Gama, Vítor Cunha acha que a tragédia ninguém mais responsabiliza que aos próprios e absolve-se de estar envolvido na tragédia do Meco e no fenómeno da praxe. Não tenho nada a opor ao texto do Vítor, também acredito que os indivíduos se devem responsabilizar pelos seus actos. É precisamente por crer nesse princípio que publicamente me penitencio.
Nunca participei em nenhuma praxe, quer no primeiro ano da universidade - como caloiro - nem nos anos seguintes - como veterano. Não quis ser praxado, não quis praxar. Para ser rigoroso, participei uma vez numa aula fantasma, em que fiz o papel do aluno marrão que não fazia mais nada que não fosse ler livros, de preferência estranhos (o que se tornou mais uma auto-profecia do que uma partida). Por razões que hoje compreendo mal, usei o traje académico naquelas alturas que pareciam importantes - concertos da semana académica, jantares oficiais da Associação Académica e a benção das pastas, esta última por deferência familiar. Uma vez, por faltar a uma convocatória de praxe, todos os meus colegas foram punidos pela minha ausência, num bom exemplo da prática coerciva concentracionária. Não me arrependo de ter faltado, mas hoje sinto que devo um pedido de desculpas aos meus colegas - embora saiba que o culpado desta história não seja o desertor mas o carrasco.
No entanto, a minha penitência não é com o passado, que tem vinte anos e nenhuma relevância actual. Como professor numa universidade, todos os outonos me cruzo diariamente com praxes bem parvas e agressivas. Todos os outonos me indigno, todos os outonos digo aos meus alunos de 1º ano para resistirem e abandonarem a praxe, todos os outonos uso as minhas formas de resistência (como impedir que alunos de pijama ou cara pintada entrem na minha sala, o que até agora tem evitado que os mais velhos os obriguem a andar de pijama ou pintados, pelo menos nos dias das minhas aulas), todos os outonos explico aos alunos do 3º ano o contexto histórico e sociológico da praxe e todos os outonos lhes peço para não alinharem com militarismos e totalitarismos.
Mas todos os outonos me acobardo quando vejo 20 alunos deitados no chão à porta da faculdade ou encostados à parede enquanto alguém lhes grita que eles não prestam. As razões são muitas, como não querer chegar atrasado à aula, o medo do confronto físico ou para evitar um mal estar nas aulas, se por acaso o praxante for meu aluno - e as três já me aconteceram. Seja como for, é cobardia não me intrometer. E não adianta dizer, como alguns colegas meus, que não é nada connosco. Mas é. Quando há pessoas a ser coagidas, enxovalhadas e até violentadas à porta da faculdade onde trabalho (porque se proibiu a praxe dentro do edifício e se aliviaram as consciências), sim, a culpa e a responsabilidade também são minhas.
Acredito e entendo que o Vítor não tenha razões para se sentir culpado. Eu tenho.
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