quinta-feira, 13 de março de 2014

Eufemismos...

Suponham que um título de dívida pública, uma Obrigação do Tesouro (OT), paga 10€ de cupão daqui a 1 ano, 10€ daqui a 2 anos e 10€ daqui a 3 anos. Suponham também que paga um valor nominal de 80€ daqui a 3 anos. Finalmente, admitam que essa OT tem uma cotação no mercado de 100€. Tudo isto implica que a taxa de actualização implícita é de 3,5% ao ano, ou seja:
  • 10/1,035+10/1,035^2+10/1,035^3+80/1,035^3=100€
Perdão dos juros
Suponhamos agora que surge um manifesto com uma ideia brilhante. Pagar o capital em dívida, ou seja o valor nominal, mas reduzir drasticamente os juros usurários. Ou seja, em vez de se pagar 10€ de cupão, paga-se apenas 1€. Qual será a quebra de valor dessa obrigação? É fácil. A obrigação passará a valer:
  • 1/1,035+1/1,035^2+1/1,035^3+80/1,035^3=75€
Ou seja, o detentor da obrigação perde 25% do seu valor (eu sei que estou a simplificar ao manter a mesma taxa de actualização, mas esta simplificação não altera o argumento principal).

Perdão da dívida
Suponhamos agora um outro manifesto. Este, em vez de cortar nos juros, prefere cortar 35% no capital em dívida. Ou seja, propõe que se mantenha o pagamento de 10€ anuais, mas reduz o capital em dívida de 80 para 52€. Qual o novo valor desta obrigação? É fácil:
  • 10/1,035+10/1,035^2+10/1,035^3+52/1,035^3=75€
Ou seja, a OT perde 25% do seu valor.

Haircut
Agora, aparece um manifesto que simplesmente propõe reduzir todos os pagamentos futuros em 25%. O que acontece à OT? É simples:
  • (1-0,25)*10/1,035+(1-0,25)10/1,035^2+(1-0,25)10/1,035^3+(1-0,25)80/1,035^3=75€
Ou seja, perde-se 25% do seu valor.

Reestruturação
Finalmente, aparece um novo manifesto. Este é contra haircuts, perdões de dívida ou de juros. Apenas pede que se estendam os prazos de pagamento. Ou seja, paga-se exactamente o mesmo, mas pede-se uma extensão de 8 anos e 5 meses dos prazos de pagamento. O que acontece à OT? Mais uma vez, é simples:
  • 10/1,035^(1+x)+10/1,035^(2+x)+10/1,035^(3+x)+80/1,035^(3+x)=75€, com x=8+5/12.
Ou seja, o credor fica a arder com 25% da OT.

Resumo
Haircuts, reestruturações, alargamento de prazos, perdões de dívida e reduções de juros é tudo a mesma conversa. No fundo, é um default ou incumprimento (parcial) da nossa dívida. Chamar-lhes um nome diferente, qualquer ele que seja, é um mero eufemismo.

33 comentários:

  1. Sem entrar nas contas, o "problema" está no "valor de mercado de 100 Euros". O valor da OT são 80 euros, o resto é algo que apenas diz respeito a um mercado secundário e não tem nada a ver com o emissor. E são 80 euros agora, daqui a um ano ou daqui a 1000 (as chamadas obrigações perpétuas).

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    1. Caro LA-C,

      Eu empresto-lhe 100 euros. Combinamos que lhe pago 5 euros cada ano e ao fim de 3 anos devolvo-lhe os 100 euros. O que eu lhe devo são SEMPRE 100 euros. Se você arranja um amigo que lhe assume a dívida e lhe dá, sei lá, 105 euros por ela. Isso é problema entre si e o seu amigo. Eu tenho zero a ver com o assunto e continuo a dever-lhe 100 euros.

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    2. se me paga 5 € por ano durante 3 anos e mais 100€, então está a dever-me 115€, não?

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    3. Ao fim dos três anos sim, no ano "zero", não. Devo-lhe 100 euros.

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    4. Como? Promete pagar-me 115€ e só me deve 100€?

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    5. Não não prometo. Prometo devolver-lhe o emprestado daqui a 3 anos, pagando um juro (enquanto não o faço) de 5 euros. Se lho devolver amanhã (e sem a complicação de fraccionamento de juros) cessa a minha obrigação de lhe pagar os juros.

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    6. Numa obrigação não existe a opção de pagar amanhã. Tem de pagar o Cupão.

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    7. Pois, e como disse noutro comentário, admito que sim. Mas moralmente - e é a parte que me interessa - a dívida restringe-se aos valores vencidos. Portanto, e se quiser, a opção não existe mas devia existir. Ou seja, a emissão devia possuir uma clausula que permitisse o resgate antecipado da dívida, com pagamento do valor facial da obrigação mais juros vencidos (admito, ainda, uma penalização pequena por perdas).

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    8. "Mas moralmente - e é a parte que me interessa"

      OK, se para si isto é uma questão moral, não discuto. Não confunda é a sua moralidade com formalidades. Se desde o início tivesse percebido que para si a questão é moral, não estava a rebater as suas opiniões.

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    9. Fair enough. Sim, para mim esta questão é acima de tudo moral (e a distinção entre os diversos tipos de reestruturação, também). Se, em números, vai dar tudo ao mesmo? Vai, concordo consigo.

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  2. Carlos,

    O valor da OT não é de 80 euros (capital). Vale o capital mais os cupões prometidos, menos o custo de oportunidade de a comprar (em vez de usar os 80 euros para consumo ou investimento) e o valor correspondente ao risco de não ser paga.

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    1. Isso é o valor de "mercado", se quiser. Não é o valor real, actual, da dívida.

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    2. Lamento, o valor actual da dívida, para uma taxa de actualização de 3,5% é, exactamente 100€.

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    3. Isso é o que Vc. acha que a dívida vale, caso receba os juros e o capital inicial na totalidade. E se eu saldar a dívida amanhã?

      Pode-me dizer que tal não é possível - provavelmente não. Mas eticamente é idêntico e perfeitamente aceitável. O saldo da dívida na totalidade (capital inicial + juros vencidos) em qualquer momento deve extinguir a mesma, bem como extinguir responsabilidades ou expectativas futuras.

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    4. "Isso é o que Vc. acha que a dívida vale, caso receba os juros e o capital inicial na totalidade."

      Desculpe, mas sabe o que é o valor actual de uma obrigação?

      "E se eu saldar a dívida amanhã?"
      Se quiser saldar a sua dívida amanhã eu só aceito se me pagar 100€, evidentemente. Ia vender por 80 algo que vale 100?

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    5. Isso é problema seu. Eu, moralmente, saldo a minha dívida. Se Vc. achou que ia receber mais, azar...

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    6. Não discuto a sua moralidade. Como há bocado escreveu "formalmente", pensei que tinha algum argumento que fosse além da sua moral. Legalmente, ou seja, formalmente, não pagou nada. Quando emite uma Obrigação obriga-se a pagar um determinado fluxo. Se a quiser pagar antecipadamente tem de a comprar no mercado e sujeita-se à sua cotação.
      Se depois se sente moralmente feliz sem pagar a sua dívida é outra questão. E sobre moralidades não discuto.

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    7. Caro LA-C, formalmente a dívida resultante de juro não existe até ele se vencer. O que existe é a obrigação do seu pagamento a quando do vencimento. Expectativas futuras não podem ter reflexo no presente. O valor "de mercado" é irrelevante para quem emite a dívida, é (ou deveria ser) um problema entre quem a negoceia posteriormente.

      Quanto à moralidade, está engando sobre o "sem pagar a dívida". A dívida está paga. Se as suas expectativas futuras foram defraudadas, tenho pena, mas é problema seu.

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    8. "Caro LA-C, formalmente a dívida resultante de juro não existe até ele se vencer."

      Formalmente, é um Cupão e não um juro.-

      "O valor "de mercado" é irrelevante para quem emite a dívida"

      Está absolutamente enganado. Se o valor de mercado for zero, então quem emite dívida recebe zero por ela. Ou seja, emitiria uma OT de 80€, ficaria com a obrigação de pagar 80€ num futuro definido, e em troca receberia zero. Só se fosse muito estúpido, é que não ligaria ao valor de mercado. Aliás, se diz que as taxas de juro das nossas emissões subiram isso é exactamente o mesmo que dizer que o valor de mercado desceu.

      " A dívida está paga."
      A dívida só está paga quando a OT está vencida, ou se o Estado a resgatar no mercado. Não há moralidade que possa alterar este facto jurídico.

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  3. Carlos,

    Seria inconcebível que duas OT com capitais iguais e cupões diferentes tivessem o mesmo valor.
    Não sou economista, mas à primeira vista, para avaliari uma OT deve ter em conta o capital, adicionar os cupões prometidos, e subtrair o custo de oportunidade da sua compra e o risco de default. (pelo menos)

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    1. Em princípio não deveriam ter, mas até podem por assimetria de informação ou capacidade de acesso (veja-se os OT vs os certificados de aforro). Mas não me estou a referir a isso, somente a que formalmente é incorrecto (na minha opinião) considerar obrigações futuras como dívida actual.

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    2. Mas onde foi buscar essa formalidade?
      Já agora, suponha que tem, uma perpetuidade de 10€. No seu formalismo isso corresponde a uma dívida de zero?

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    3. Não, corresponde à dívida inicial. Se quiser - e posto de outro modo - o juro não é dívida até ao seu vencimento. Numa obrigação perpétua a dívida é o valor nominal da obrigação

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    4. "Numa obrigação perpétua a dívida é o valor nominal da obrigação"

      Qual é o valor nominal de uma perpetuidade?

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  4. Caro LA-C,

    O valor de emissão, o que Vc. pagou ao emissor para ter a obrigação.

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  5. Caro LA-C
    Mas a sua hipótese de reestruturação supõe, julgo, a carência de juros nos primeiros 8 anos e 5 meses.

    Isto não se verifica nas reestruturações de prazo já efectuadas, pelo que o capital tem ficado imutável, logo os juros ( montante) aumentaram

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    1. Os exemplos foram construídos sem pensar em nenhum exemplo real em concreto. Apenas quis mostrar que isto é tudo a mesma coisa. Se quiser considerar outro exemplo de reestruturação pode pô-lo aqui. Prometo que em menos de 10 minutos encontro uma solução com perdão de dívida que é equivalente.

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  6. É realmente muito difícil explicar às pessoas como se calcula o valor do dinheiro. Caro Luís aprecio o tei verdadeiro espírito apostólico (JSF)

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  7. Eu concordo com o Luís e já várias vezes tive de explicar esta ideia a diferentes pessoas. Pelo que agora as vou remeter para este post. Obrigado.
    Penso que a palavra usada no título não podia ser mais correcta. Eufemismos.
    Mas saliento, no entanto, a importância dos mesmos.
    É importante reparar que um exemplo também possível, com efeitos idênticos para a remuneração de um investidor estrangeiro, é o de uma desvalorização da moeda. A desvalorização da moeda desvaloriza a divida e os juros a receber (na moeda do investidor estrangeiro). Vários estados, quando em necessidade, desvalorizaram a moeda, seguindo politicas monetárias que internamente, pelo aumento da inflação também reduziram os juros reais. No entanto, a desvalorização da moeda não é considerado um "default". Mas uma forte desvalorização, pode ter efeitos idênticos a um severo "hair cut".
    A questão é que diferentes práticas (desvalorização, extensão de prazos, negociação de juros ou hair cut) têm diferentes efeitos na reputação, no rating, e também nos balanços dos investidores institucionais.
    É por isso que os eufemismos são eufemismos, e em termos financeiros as diferenças são bastante irrelevantes. Mas em termos políticos, de reputação, ou se quisermos em termos psicológicos, da pseudo psicologia infantil dos mercados, estas questões e nuances mas não deixam de ser relevantes. É por isso, e por a economia ter de adicionar todas estas questões à equação, que os eufemismos são economicamente relevantes.

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    1. Em relação ao que escreves adicionaria uma coisa. É verdade que uma desvalorização ou forte inflação tem os mesmos efeitos, mas isso é considerado pelos mercados como fazendo parte do risco da OT.
      E, precisamente por isso, ou seja, por não ser uma situação excepcional, há toda uma gama de instrumentos financeiros disponíveis para fazer a cobertura desse tipo de risco. Por exemplo, os swaps de taxas de juro são um instrumento muito usado e muito líquido nos mercados.
      Quando falas de haircuts, perdões de dívida, defaults, etc estás a falar de prejuízos para os quais não existem instrumentos de cobertura de risco ou, então, que são bastante precárias e com liquidez muito reduzida.

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  8. Os CDS cobrem o risco soberano. Sendo verdade que são de natureza diferente, pois a inflação e a desvalorização existem sempre e são riscos que têm de ser sempre considerados. Também é verdade que, em alguns casos alterações fortes da politica monetária, intencionais, que não podem ser antecipadas, vão ter efeitos financeiros nos investidores muito semelhantes aos de um "hair cut", mas não são avaliadas pelos mercados da mesma maneira. Esse era o cerne do meu argumento. A ideia de que havendo várias medidas com efeitos financeiros semelhantes, estas podem ter efeitos de reputação, e ser aceites pelos mercados e instituições financeiras de forma muito diferente.

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