O RESPLENDOR DAS GUERRAS DO ALECRIM E
DA MANJERONA
Cristóvão de Aguiar
Tivesse António José da Silva, o
Judeu, por um toque de magia, tido conhecimento da nova e carnavalesca batalha
de flores que deflagrou, nas últimas semanas, na Avenida Marginal de Ponta
Delgada, por ter sido despoletada uma granada
defensiva, cujos estilhaços quase atingiram o resplendor da imagem do Ecce Homo, e teria acrescentado mais uma
parte, a 3.ª, à sua ópera joco-séria, Guerras
do Alecrim e da Manjerona, a fim de lhe dar um final apoteótico e de maior
comicidade.
Nesta jihad
islâmica ou, traduzindo para português de lei: nesta guerra santa de uma nova
cruzada, ou guerrilha idólatra, têm entrado na liça padres de duas naturezas:
os néscios ultramontanos e os que sabem o que fazem e o que dizem. Um deles, pertencente
à hoste fundamentalista e ultramontana, brindou, num jornal, o Bispo de Angra
e demais Ilhas dos Açores com um epíteto digno de quem veio: uma besta-quadrada...
Têm também dado a sua achega iluminados sociólogos, alguns elementos do Povo,
mas sobretudo certa fidalgaria (os lídimos carregadores açorianos do andor e
donos consuetudinários do resplendor) que descende, em linha recta, da família
da Senhora Dona Joana Tomásia da Câmara Albuquerque, herdeira, por não ter
havido filho varão, do Condado da Ribeira Grande.
Talvez fosse útil, neste momento, refrescar a memória dos
que, beatificamente, falam em dessacralização do resplendor da imagem
milagrosa, acaso seja exposto no Museu de Arte Antiga, e reler a parte da
Bíblia que reza assim: […] “Não faças para ti ídolos, nenhuma representação
daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra;
não te prostres diante desses deuses, nem os sirvas…] ”; o Bezerro de ouro que
Moisés, na descida do Monte Sinai, pôs em cacos…
Nesse longínquo condado vigorou e acho que vigora ainda o
chamado alqueire de vara pequena, para que os ricaços do tempo aumentassem as
suas terras e ficassem mais ricos, assim podiam ascender ou aceder ao posto de
morgado. As sacramentais aldrabices contabilísticas ainda muito em voga no
nosso tempo, sobretudo nos orçamentos do Estado e outros cambalachos, dando
razão ao Eclesiastes: Não há nada de novo debaixo da rosa do Sol!
Esta 2.ª Condessa da Ribeira Grande casada com um tio, Guido
Augusto da Câmara e Ataíde, foi quem ofereceu o valiosíssimo resplendor à
imagem do Santo Cristo, decerto para pagar alguma promessa e receber em troca
benefícios espirituais, que essa gente nobre nunca deu almoços grátis…
Causas próximas desta guerrilha ou batalha de limas carnavalesca,
que terá o seu armistício em breve: a ida temporária do referido resplendor
para Lisboa, a fim de figurar numa exposição no Museu de Arte Antiga, onde já
estiveram peças ainda mais valiosas, quer do País, quer do estrangeiro, Oriente
incluído, e, que se saiba, ninguém desses países fez cenas próprias de uma
barbárie elitista... Do mesmo modo, também lá esteve, em exposição, a Custódia
de Belém, e ela não se dessacralizou pelo facto de terem caído olhos profanos,
atónitos, sobre a maravilha que Mestre Gil Vicente concebeu. Trata-se de uma singular
obra de arte, que, como todas, deve ser fruída com emoção estética, independentemente
das crenças religiosas de quem as aprecia.
São Miguel, porém, cioso de que lhe roubem a preciosidade,
como freirinha egoísta que esconde a receita de um doce conventual, bate o pé,
diz que não, faz cordões sanitários, humanos e desumanos, abaixo-assinados
ridículos, porta-se como menino birrento que se recusa a que lhe mudem as
fraldas borradas do espírito e da mente, enfim, representa, no Campo de São
Francisco, um triste espectáculo que o Santo Cristo, o verdadeiro, não o
feito de madeira e recamado de ouro, não aprovaria: primeiro, porque é
inteligente; segundo, porque aborrece burridades e brutezas pseudo-intelectuais
de certas criaturas que se dizem cultas e crentes fervorosas, mas são tão-só
fanáticas e pesporrentes elevadas à quinta casa…
O mais avisado será arranjar um Bispo novo, doméstico, domesticado,
dócil, que feche os olhos ao que qualquer bicho-careta apeteça fazer, destituir
o actual prelado (sugiro que seja substituído pelo sacerdote que desfeiteou o
actual Bispo de Angra), transferir a diocese para Ponta Delgada, como já houve
ameaços em tempos recuados, tornar a Ilha independente, mesmo que os Americanos
não estejam pelos ajustes, como há pouco foi escrito por um ex-reitor, e deixem
lá o resplendor da imagem ir a Lisboa, ao Museu de Arte Antiga. Garanto-vo-lo
que será muito bem tratado e o Santo Cristo genuíno não se importa, até
agradece, e a imagem também, sempre fica mais aliviadinha por uns tempos do
peso sobre a cabeça, imagem de madeira fina, que pode criar caruncho, oferecida
pelo Papa Paulo III ou Clemente IV a umas freirinhas da Caloura que viajaram
até Roma com a finalidade de pedir autorização ao Papa para edificar um Convento
na terra onde se cultiva o melhor vinho de cheiro da Ilha...
Ilha do Pico, 8 de Junho de 2014
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