O escritor francês Michel Houellebecq, no seu último romance,
“Submissão”, imagina um cenário em que o partido a “Fraternidade Muçulmana”,
liderado pelo “extremamente hábil” Mohammed Ben Abbes, ganha as eleições
presidenciais francesas de 2022. Os primeiros passos do governo de Ben Abbes
são coroados com um extraordinário estado de graça, para o qual contribuíram: a
diminuição drástica da delinquência; a diminuição do desemprego (devido ao
regresso das mulheres a casa); a estabilidade do défice público (os largos
subsídios atribuídos às famílias eram compensados com os cortes na Educação
Nacional – “de longe, no passado, a maior despesa do Estado”); o
“distributivismo”, que estava de acordo com o espírito do tempo, ao retirar
subsídios às grandes unidades industriais (que, mesmo assim, continuavam a
fechar) e ao entregá-los a empresários por conta própria, permitindo,
nomeadamente, aos jovens “montar o seu estaminé”, um “sonho profissional
universalmente manifestado”.
No meio deste “impulso de esperança”, que arrasta a França
para um “novo modelo de sociedade”, um jovem sociólogo chamado Daniel Da Silva
publica um livro ironicamente intitulado “Um dia, tudo isto será teu meu
filho”, com o subtítulo “Para uma família de conveniência”. Na introdução, Da
Silva presta homenagem ao filósofo Pascal Bruckner, que dez anos antes havia
publicado um livro no qual preconizava o regresso ao “casamento de
conveniência”, com o argumento de que o “casamento por amor” havia falhado. Da
mesma forma, Da Silva acha que as relações entre pai e filho não devem ser
baseadas no amor, devem antes assentar na “transmissão do saber-fazer e do
património”. Lentamente, o livro de Da Siva torna-se uma sensação. Estas teses
“anti-românticas” conseguem quebrar o consenso mediático ”em torno da liberdade
individual, do mistério do amor e de outras coisas que tais”.
Estas profecias de Houellebecq não nos deviam espantar ou
chocar. Na verdade, o amor é uma das mais raras ocorrências da história da
humanidade.
Caro José Carlos Alexandre,
ResponderEliminarLemos de modo desigual a mesma coisa.
Em "Submissão", Houellebecq não pretende ser profético mas provocador. E a entrada de Da Silva, do meu ponto de vista, não pretende sustentar "a rara ocorrência do amor na história da humanidade". Aliás, nada no texto, mesmo ironicamente, aponta para aí. Mesmo considerando o fracasso confessado pelo protagonista que atravessa toda a obra.
O que, a este respeito, é reflectido no livro, como parte de um conjunto vasto de transformações que uma sociedade ocidental islamizada de um momento para o outro fatalmente observaria, é o casamento acordado ou negociado, típico das sociedades onde o papel da mulher é subalternizado.
Um papel que a remete para a vida em casa, domesticada, abrindo vagas para os homens e, deste modo, reduzindo o desemprego, por exemplo.
As teses do tal sociólogo Da Silva (o nome não é casual mas é, nos tempos actuais, despropositado)
pretendem suportar ideologicamente a transição da França para uma sociedade islâmica onde o papel submisso da mulher supõe, em princípio, a ausência de referências amorosas de qualquer tipo. Ainda assim, não penso que possa concluir-se que o amor seja excluído por essa forma, para mim abstrusa, de sociedade.
Mas sobretudo não compreendo a sua conclusão (não a de Houellebecq) : " Na verdade, o amor é uma das mais raras ocorrências da história da humanidade."
Se me der um exemplo dessas raras ocorrências fico esclarecido.
Caro Rui Fonseca,
ResponderEliminarConcordo que o Houellebecq quer ser sobretudo provocador, embora ele em entrevistas tenha dito que acha o cenário descrito possível no futuro (mas não em 2022). Trata-se de um romance e, por isso, também não sabemos exactamente o que pensa Houllebecq, uma vez que um escritor não é responsável pelas opiniões das personagens e do narrador (que neste caso é a personagem principal). Mas nos livros deste genial escritor francês um dos temas recorrentes é o desencanto, a desilusão das relações amorosas, as relações distantes entre pais e filhos. Ele despreza o islamismo (a religião mais estúpida de sempre, segundo as suas palavras) mas odeia o capitalismo, a modernidade, mas estou a afastar-me da sua questão.
De facto, a conclusão sobre a "rara ocorrência do amor" não está explicita no livro, é minha, como diz. A Hannah Arendt escreveu algures que os poetas nos iludem, porque, para eles, o amor é um experiência essencial, ou melhor, é indispensável e isso dá-lhes o direito de o confundir com uma experiência universal. Só que o amor não é universal nem intemporal, mas a nossa sociedade (ocidental) gosta de acreditar nisso. Até ao século XIX não passava pela cabeça da maioria das pessoas que o casamento por amor fosse a melhor solução, achava-se até irrealista que se pudesse concentrar na mesma pessoa o amor romântico, o amante, o pai, o marido responsável, etc. Hoje, muitas sociedades continuam a ver o "casamento por amor" uma ilusão. Sobre a relação entre pais e filhos (em "Submissão", fala-se, em bom rigor, da relação de "pai e filho" e não das mães), a história mostra que o amor dos pais pelos filhos não é a regra, ou, pelo menos, era um amor muito diferente do de hoje.
"Até ao século XIX não passava pela cabeça da maioria das pessoas que o casamento por amor fosse a melhor solução"
EliminarSerá que não? Não sei se o casamento por interesse não seria quase exclusivo da aristocracia.
De qualquer maneira, a popularidade do tema do amor contrariado (ou mesmo proibido) nalguma literatura pré-moderna (como "Tristão e Isolda", "Romeu e Julieta# ou a relação entre Guinevere e Lancelot, ou mesmo, de certa forma, "Orfeu") dá a entender que, mesmo que não existisse na prática, a relação por amor era vista como sendo suposto existir.
Claro que em contraponto temos a quase impossibilidade probabilística de duas pessoas se apaixonarem mutamente.
Lá está, "os poetas iludem-nos". Sobre a questão aristocrática, eu diria até que o verdadeiro tem alguma qualquer coisa aristocrática, no sentido em que me mete impressão aquele "amor" em que os amantes estão preocupados com os direitos de cada um sobre os cortinados, as carpetes e o resto da mobília. Um verdadeiro aristocrata (de espírito) nunca se preocuparia com estas contas e cálculos.
EliminarCaro José Carlos Alexandre,
ResponderEliminarSobre o livro e uma entrevista publicada hoje no El País escrevi aqui
http://aliastu.blogspot.pt/2015/04/o-assassinato-da-franca.html
"Premonitório ou provocador, a Houellebecq qualquer dos atributos convém. "Soumission" não é um romance; é um manifesto político romanceado. A capa da edição portuguesa é muito significativa da intenção do texto.
Quem não gosta do estilo são os putativos intrusos."
Do meu ponto de vista, os incidentes sexuais (ia a escrever passionais, mas achei desadequado) entram ali como as conexões entre os pistoleiros e as miúdas dos sallon nos filmes de cowboys.
O que é realmente importante são os tiros ...
Obrigado pela sugestão de leitura, é sempre interessante ler o provocador Houellebecq, e ele é um verdadeiro provocador, ou seja, é alguém que se sente provocado pela realidade. A fraqueza e o oportunismo das elites é evidente no livro, para se manterem no poder o PS e a UMP não hesitam em negociar os cargos para um futuro governo com a Fraternidade Muçulmana. Também achei interessante na entrevista ele dizer que se as mulheres quiserem realmente saber o que pensam e sentem os homens, o melhor é ler os livros dele, porque os homens aprenderam a calar-se e o mundo masculino (palavra a cair em desuso) é um mistério.
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