sábado, 2 de maio de 2015

KS

É nas perdas, que a vida nos dá maior oportunidade de crescer: nas perdas, quando tudo desvanece e somos reduzidos ao nosso essencial. Há algumas vezes em que esse essencial mal é suficiente para nos carregar por mais um dia. Mas, quase sempre, serve...

É Maio e neste mês eu faço 43 anos. Neste ano, celebro 20 anos que eu saí de Portugal. No início fui emprestada, mas algo em mim me dizia que eu tinha saído para sempre. Não é que Portugal fosse ou seja pequeno demais; eu é que precisava e preciso de algo maior, preciso de poder olhar para o universo e sentir que pertenço e, se nós estamos sempre no mesmo sítio, não sabemos se pertencemos a apenas uma parte ou se pertencemos ao todo. Eu quero pertencer ao todo. Tenho um amigo que me diz que eu não estou no presente, que falo muito no passado, como se estivesse triste, melancólica, saudosa de outros tempos. Não é isso que eu sinto de todo; eu sinto um desejo de pertencer a algo mais do que apenas o presente ou o passado ou o futuro. Muitas vezes penso nas moléculas, nos átomos que me formam: onde estiveram, para onde irão. Quero o espaço e o tempo todo, o presente não me satisfaz, preciso de mais para me sentir viva.

Há quase 20 anos conheci a Karla e ela foi uma das pessoas que me ensinou a viver melhor. Não sei quando, nem porquê, mas um dia ela disse-me: "My initials are KS--chaos!" Talvez isso tivesse sido um sinal ou talvez não tivesse significado nada. Foi como que um acidente cósmico conhecê-la. Em Dezembro de '95, eu decidi que queria passar o Natal sozinha. Para mim, por vezes, é muito difícil estar sempre com alguém porque requer bastante esforço mental da minha parte e eu preciso muito de ter umas boas doses de tempo só. Como vivia numa residência, nem sempre havia oportunidade de estar só, pois sempre que saía do meu quarto havia muitas pessoas e muitas actividades sociais que me puxavam e exigiam a minha atenção. Então decidi que, nesse ano, queria passar o Natal sozinha. Eu estava nos EUA sem família, logo não tinha ninguém que exigisse a minha presença, apesar dos meus pais me terem perguntado se eu queria ir passar o Natal a Portugal. Não, eu não precisava de Portugal; eu precisava de espaço e de tempo fora de Portugal. A cidade onde eu estava chamava-se Stillwater: água parada, não poderia ser mais perfeito do que isso.

Os meus planos de solidão foram abortados. Um dia, durante esse Dezembro, depois de quase toda a gente ter saído para ir passar o Natal a casa, passeava eu pelo corredor quando uma rapariga da residência me perguntou o que eu iria fazer pelo Natal. Eu disse que ficaria ali, queria estar sozinha. Ela disse-me peremptoriamente que não era possível eu passar o Natal só e, por isso, deu-me o seu número de telefone e disse-me para eu lhe telefonar para ela me vir buscar para eu ir passar o Natal com a sua família. Na altura, eu não pensei muito sobre aquilo, apenas guardei o telefone dela. Na véspera de Natal, a minha resolução de estar sozinha quebrou e eu telefonei-lhe. Na tarde de 24 de Dezembro de 1995, a Karla veio-me buscar e levou-me para Broken Arrow, ao pé de Tulsa. Pelo caminho houve um furo no pneu do carro dela, já perto de casa. Um casal de pessoas idosas parou e deu-nos boleia até casa do pais dela. Fiquei com ela algum tempo. Ela tinha um trabalho part-time no Subway durante alguns dias, mas de resto, íamos a livrarias, cafés, passeávamos, víamos filmes, e passávamos tempo com os amigos dela.

A Karla tinha um irmão gémeo que era completamente diferente dela. Quando estavam juntos parecia que havia faíscas, tal era o nível de sarcasmo e de ironia com que conversavam. Notava-se que era preciso estar alerta e em boa forma intelectual para fazer parte daquela família. Não me recordo do que estudava o Kevin, mas a Karla estudava inglês. Estar ao pé dela era ouvir falar de literatura, poesia, escrita... Coisas muito mais interessantes, naquela altura, do que a minha área de "apenas" economia. Quando eu andava na escola primária era a escrita e a língua que me interessavam, tudo o resto era secundário, mas não foi isso que eu decidi estudar mais tarde.

Depois desse Natal, ficámos boas amigas durante algum tempo. Conversávamos sobre rapazes, coisas de raparigas, sonhos, viajávamos, etc. Quando fomos a Dallas, eu fiz uma tatuagem, e a Karla segurou a minha mão. No Spring Break de 96, fizemos uma road trip com o Peter e o Tol ao Grand Canyon e, quando lá chegámos, achámos que seria bom ir a Las Vegas. Seria apenas mais meio dia a conduzir. A melhor maneira de conhecer os EUA é num carro e é ir para um sítio onde se sinta a grandiosidade de estar no meio do nada. É uma experiência completamente única. É por isso que eu tenho dificuldade em pensar numa viagem a Nova Iorque e sentir alegria nisso. Um sítio cheio de edifícios e pessoas parece-me completamente estéril comparado com o deserto do Arizona ou a planície de Oklahoma. A maior parte das outras pessoas pensa exactamente o oposto de mim. À noite, quando eu estou no meio do nada, e olho para as estrelas e elas são tantas, tantas, há algo dentro de mim que acorda e me faz muito feliz porque eu sinto-me parte de mais do que apenas uma "pálida pinta azul", como chamava Carl Sagan à Terra.

A Karla queria ir estudar para a Europa no ano seguinte. Como eu trabalhava no Gabinete de Relações Internacionais e era eu própria uma estudante de intercâmbio, eu sabia do tópico e aconselhava-a na melhor estratégia. Ela queria ir para a Irlanda, mas eu dizia-lhe que não, essa era a estratégia errada. Todos os alunos americanos colocavam a Irlanda ou a Inglaterra primeiro porque eram países que falavam inglês. A melhor estratégia era candidatar-se a um país onde desse para estudar em inglês, mas onde não se falasse inglês, porque haveria um número menor de candidatos e ela teria uma probabilidade mais alta de ser seleccionada. E foi assim que a Karla foi estudar para Utrecht, nos Países Baixos.

Depois de eu sair dos EUA e antes dela sair, a Karla foi para o estado de Nova Iorque, em Skidmore College, onde ela trabalhou como uma assistente num campo de férias de verão. De lá ela escreveu-me uma carta--correio a sério, não há nada melhor do que abrir o correio e encontrar uma carta a sério, escrita só para nós, durante uns minutos da vida de alguém. Hoje, partilho convosco parte dessa carta porque nela está parte de uma vida que já não existe. Em 13 de Janeiro de 2003, a Karla suicidou-se. Tinha 26 anos, era bipolar, e não conseguia encontrar um tratamento que lhe desse uma vida normal. Há quem tenha uma vida normal e sonhe em ter algo extraordinário, mas nem sempre se pode pagar o preço de ter o extraordinário e sobreviver. O caos é, ele próprio, parte do extraordinário.

Para saber mais da Karla e da perturbação bipolar, ver aqui. Algumas das coisas que a Karla escreveu estão aqui.

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