Em 1949, um
ano antes da sua morte, George Orwell publicou Mil novecentos e oitenta quatro,
uma obra-prima de reflexão política, na qual surgem termos como big brother ou newspeak (novilíngua)
que se tornaram entretanto correntes. Trata-se de uma advertência satírica
sobre as tendências totalitárias existentes na nossa sociedade. Estranhamente,
Hannah Arendt em “As origens do totalitarismo” não faz uma única referência a
Orwell, mas adiante.
As preocupações de Orwell com o
totalitarismo vinham de trás. Em 21 de maio de 1941, numa emissão radiofónica,
afirma que o indivíduo autónomo estava a deixar de existir, ou melhor, o
indivíduo estava a perder a ilusão de ser autónomo.
Orwell achava que aquela era a época do
Estado totalitário. A ameaça de totalitarismo não provinha apenas da Alemanha,
da Itália ou da Rússia. Era um fenómeno que ameaçava tornar-se mundial. Orwell
via sinais dessa tendência numa economia cada vez mais centralizada no Estado,
que ele designa por socialismo ou capitalismo de Estado.
Com isso, a liberdade económica e a
liberdade do indivíduo para fazer o que gosta, para se movimentar de um lado
para o outro, chega ao fim. Ora, o fim dessa liberdade económica teria efeitos
na liberdade intelectual. Este ponto é importante, porque afasta
irremediavelmente Orwell dos seus camaradas socialistas.
Os socialistas pensavam que, num estado
centralizado, a arte floresceria ainda mais porque o artista já não estaria
sujeito a constrangimentos económicos. Não era isso que Orwell observava. Para
Orwell, sem liberdade económica, dificilmente haveria liberdade de pensamento e
o impulso criativo estaria condenado a falhar.
Um Estado totalitário tenta controlar as
acções dos indivíduos, mas tenta, sobretudo, controlar completamente os seus
pensamentos e emoções. Estabelece dogmas porque “precisa da obediência absoluta
dos seus súbditos”, mas altera-os em função das conveniências de cada momento.
O que é verdade hoje, é mentira amanhã, e aqui o Estado totalitário
diferencia-se das antigas ortodoxias (como a cristã) que mantinham os
“enquadramentos mentais” estáveis.
Orwell não
tinha dúvidas de que o capitalismo liberal estava a chegar ao fim e que uma
economia colectivizada era inevitável. A liberdade de pensamento nestas
circunstâncias estaria seriamente ameaçada, embora não necessariamente
condenada. Talvez conseguisse sobreviver nos países em que o liberalismo havia
lançado raízes mais profundas. Mas esta, confessava Orwell, era apenas uma
“esperança piedosa”.
"Ora, o fim dessa liberdade económica teria efeitos na liberdade intelectual. Este ponto é importante, porque afasta irremediavelmente Orwell dos seus camaradas socialistas.
ResponderEliminarOs socialistas pensavam que, num estado centralizado, a arte floresceria ainda mais "
Excluindo, claro, os socialistas que defendiam (imediata ou gradualmente) a abolição do Estado, o que era capaz de ser (pelo menos em teoria - na prática os Comunistas-com-C-grande faziam extamente o contrário) a maioria dos socialistas da época (fossem anarquistas ou marxistas) - aliás, tanto n'O Vil Metal como em Homenagem à Catalunha, Orwell (no segundo diretamente, no primeiro pela boca de um personagem) tem passagens dedicadas exatamente a criticar a associação que algumas pessoas faziam entre "socialismo" e "economia dirigida pelo Estado".
A ideia de apresentar Orwell como um socialista muito peculiar tende a esquecer que as posições que Orwell expressou nos seus textos depois de vir de Espanha não eram particularmente diferentes das ideias dominantes nos meios socialistas específicos em que ele se movimentava (uma conjugação entre o Independent Labour Party, alguns dissidentes do trotskismo e alguns anarquistas) - ele teria era mais talento literário para expressar essas opiniões que os outros (ok, admito que poderá ser argumentado que toda essa constelação eram "socialistas heterodoxos")
afasta irremediavelmente Orwell dos seus camaradas socialistas
ResponderEliminarEsta conclusão é muito apressada e, de facto, errada.
Orwell começou como um socialista mais comunista mas evoluiu no sentido do anarquismo.
Ou seja, Orwell continuou (até ao fim da sua vida) a ser um socialista, porém não um socialista estatizante (comunista) e sim um socialista libertário (anarquista).
O anarquismo era uma corrente política bem viva na Inglaterra desse tempo, com nomes importantes como Errico Malatesta ou Marie-Louise Berneri.
Caros Miguel Madeira e Luís Lavoura
ResponderEliminarO problema começa logo por saber o que é exactamente o socialismo ou o comunismo. Alguém sabe ao certo defini-los? Até Marx pouco ou nada disse sobre o que entendia por comunismo. Eu sei que se fala em vários tipos de socialismo, o democrático (é o mesmo que social-democracia?), revolucionário, anarquista, etc. Não me parece que o meu post esteja em contradição com o que disseram. Orwell, de facto, sempre se auto-proclamou socialista, eu chamei-o heterodoxo porque se afastava da linha de pensamento maioritária naquela época. Se calhar, hoje, muitos dos que se consideram socialistas subscreveriam o que Orwell disse, mas na altura, isso não acontecia.
De qualquer maneira, acho a questão colocada por Orwell fundamental: sem liberdade económica, a liberdade de pensamento está ameaçada. Isto, que hoje pode parecer óbvio para muitos (embora não sei até que ponto seja assim tão óbvio para muitos), era quase uma heresia quando Orwell disse o que disse.
Luis Lavoura: penso que é tão incorreto considerar Orwell como um anarquista como classificá-lo (como fez, p.ex. H. G. Wells, que o chamou de "trotskista com pês grandes") como trotskista; Orwell era, em geral, uma espécie de socialista libertário anti-estalinista, mas penso que sem nunca ter "assinado" por nenhuma ideologia específica (isto que eu vou escrever agora talvez seja um anacronismo, mas creio que Orwell teria uma posição parecida com certos setores da intelectualidade portuguesa dos anos 60/70, ligados a revistas como os Cadernos de Circunstância e organizações como o MES, críticos do capitalismo ocidental e do comunismo soviético, mas com uma ideia algo difusa do que por no seu lugar).
ResponderEliminarJosé Carlos Alexandre: o meu ponto era se era tão minoritário assim, mas admito que é complicado fazer essa contagem (até porque as várias escolas socialistas têm cada qual a sua bitola do que contam como "socialismo").
De qualquer forma, seria interessante saber exatamente o que Orwell disse, já que é um assunto em que pequenas nuances podem afetar bastante a conclusão final; p.ex., estamos a falar de economia estatizada vs. privada, ou de economia centralizada vs. descentralizada? Pelo que sei do pensamento geral de Orwell e dos seus "fellow travellers", imagino que se tivesse a referir mais à segunda dicotomia (eventualmente considerando que a concentração capitalista e a estatização da economia são diferenças de grau no mesmo fenómeno global).
Já agora, imagino que, postos literalmente perante a frase "sem liberdade económica não há liberdade intelectual" (refiro-me a uma frase literalmente assim - pequenas variantes podem mudar tudo), grande parte dos socialistas concordassem, talvez acrescentando algo como "exatamente: com o poder económico concentrado em meia dúzia de mãos, a maior parte das pessoas - nomeadamente as que não têm acesso aos meios de produção - dificilmente poderão ser verdadeiramente livres, mesmo que a lei diga que o são"; poderá se dizer que eu estou a jogar com as palavras (nomeadamente com os vários significados do termo "liberdade") mas onde quero chegar é que se pesquisarmos bem, talvez o argumento liberal "a intervenção estatal na economia põe em perigo a liberdade pessoal" e o argumento socialista "a desigualdade económica põe em perigo a liberdade pessoal" tenham mais em comum do que ambos estarão dispostos a admitir (no fundo, ambos são variantes de "é quase impossível fazer algo sem alguma espécie de interação com o mundo físico - p.ex., escrever um poema sem um papel e uma caneta - , logo quem controla as coisas acaba por controlar as pessoas")
Penso que no parágrafo final, o Miguel Madeira acaba por reflectir o que é de facto a minha opinião: liberdade implica agência. Sem capacidade de agir, a liberdade é apenas teórica, pelo que temos um totalitarismo. Isto é válido qualquer que seja o mecanismo pelo qual a agência é retirada ao individuo, seja ele legal, moral ou económico.
EliminarO meu post foi baseado num pequeno livro de ensaios do Orwell (com tradução de Desidério Murcho), publicado em 2008, com o título: "Por que escrevo e outros ensaios".
ResponderEliminarNestes ensaios,em especial em "As fronteiras entre arte e propaganda" e "Literatura e totalitarismo", ambos escritos em 1941. Cito directamente uma passagem do segundo ensaio (pp. 62-63)
"É óbvio que o período do capitalismo livre está a chegar ao fim e que os países, uns atrás dos outros, estão a adoptar uma economia centralizada a que se pode chamar socialismo ou capitalismo de Estado, consoante se preferir"
E, já agora, continuando a citação do texto: "Nunca se viu claramente que o desaparecimento da liberdade económica teria efeitos sobre a liberdade intelectual."