Em 2000, os níveis de endividamento das famílias, das empresas não financeiras e do Estado correspondiam a cerca de 218% do PIB. Em 2005, atingiam 269%. Em 2010, eram 339%. O endividamento externo cresceu de forma galopante. Em meados da década de 1990, correspondia a cerca de 15% do PIB; em 2005, a 70%; em 2009, já havia ultrapassado os 100%. A taxa de poupança estabilizou nos 20% em meados da década de 1990. Em 2000, iniciou uma trajectória descendente, até atingir os 10% em 2008. Portugal passou então a estar colocado entre os países com mais baixa taxa de poupança da OCDE - pior do que nós só os EUA e a Grécia.
A partir de 2001, a economia portuguesa caiu numa longa estagnação, que nos continua a assombrar – apenas no ano de 2007 a taxa de crescimento ultrapassaria os 2%. Desde a II Guerra Mundial que não se verificava uma estagnação tão persistente.
E, no entanto, estes desequilíbrios não passaram despercebidos. Logo em 2001, o Relatório Anual Gerência do Banco de Portugal referia:
“A evolução observada em 2000 deve ser interpretada como o início do processo de ajustamento da economia portuguesa, que terá que prosseguir nos próximos anos. Caso contrário, apenas se agravará a magnitude do futuro ajustamento necessário, aumentando a probabilidade de ele vir a ser desencadeado de forma brusca. Acresce que o conjunto dos instrumentos de política ao dispor das autoridades para facilitar o processo de ajustamento é mais limitado no contexto da participação na área do euro. Assim, a inevitável correção dos desequilíbrios externos terá que passar necessariamente por uma redução dos ritmos de crescimento da procura interna, pública e privada.”
O alerta do BP (repito: em 2001) sobre os riscos do excesso de endividamento não impediu que estes fossem desvalorizados e que a urgência da sua correcção fosse questionada. De facto, iniciou-se, nessa altura, uma discussão e uma clivagem na sociedade portuguesa que impediu o consenso necessário para suportar as medidas que permitissem um processo de ajustamento mais suave do que aquele que viria a ocorrer com o pedido de resgate em abril de 2011.
Em 2002, o governo liderado por Durão Barroso, com Manuela Ferreira Leite como Ministra das Finanças, anunciou que Portugal estava de ‘tanga’. Em consequência, o governo tomou uma série de medidas com o objectivo de conter a despesa pública (nomeadamente o congelamento de salários da função pública) e de evitar a violação, pelo segundo ano consecutivo, do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). As medidas tomadas, por esse governo e pelos seguintes, não foram suficientes para compensar o crescimento da despesa com prestações sociais e os défices orçamentais continuaram sistematicamente a violar o PEC.
As divergências em relação à necessidade e urgência do ajustamento não eram exclusivas dos políticos. Existiam também entre economistas. Cavaco Silva, em 2003, num debate com Vítor Constâncio (então Governador do Banco de Portugal), alertou para os riscos do endividamento e para a gravidade do desequilíbrio da balança corrente, apesar de pertencermos a uma União Económica e Monetária. Cavaco chamou a atenção para a necessidade de reformas estruturais que permitissem melhorar a competitividade da economia portuguesa, dada a impossibilidade de recorrer às desvalorizações competitivas da moeda.
Seguindo a ortodoxia então vigente, e aparentemente contrariando os alertas do Relatório do BP de 2001, Vítor Constâncio defendia a benignidade dos desequilíbrios externos. No pressuposto de que os mercados promoveriam uma alocação mais eficiente dos recursos na economia global, Constâncio desvalorizava os défices da balança corrente no contexto do euro. Olivier Blanchard e Francesco Giavazzi, num artigo de 2002, apresentaram uma posição semelhante – todavia, Blanchard, num importante artigo de 2006 sobre o difícil ajustamento da economia portuguesa, viria a reconhecer o seu erro.
Um outro exemplo da clivagem existente em relação à forma e à urgência da correcção dos desequilíbrios da economia portuguesa, e que na minha opinião viria a ser decisivo para o caminho seguido em 2005, foi o famoso discurso do Presidente da República Jorge Sampaio, em 2003, nas cerimónias do 25 de abril. Embora alertando para a gravidade dos desequilíbrios e para a necessidade de os corrigir (incluindo o da despesa pública), o então Presidente da República afirma então que “Há vida para além do Orçamento” (e não do défice, como é usual ser citado), lembrando a importância do investimento público e sugerindo o recurso a parcerias entre os sectores público e privado. De acordo com essa visão, do investimento público viria, como na década de 1990, o crescimento económico. E com o crescimento económico o endividamento deixaria de ser excessivo.
Seria este o caminho que o governo liderado por José Sócrates viria a seguir a partir de 2005. A desvalorização dos desequilíbrios na zona do euro e o ambiente internacional favoreciam esta opção: o excesso de liquidez com origem nos mercados asiáticos e nos países produtores de petróleo levaram as taxas de juro a mínimos históricos e o endividamento a máximos históricos.
A música ainda tocava e Portugal também quis continuar a dançar. Apesar das medidas tomadas para tentar controlar a despesa pública e os défices orçamentais, o Estado continuou a aumentar o seu endividamento. As famílias e as empresas, na expectativa do regresso do crescimento, continuaram também a acumular endividamento e a reduzir a poupança.
Infelizmente, a música deixou de tocar antes do crescimento ressurgir e as coisas tornaram-se muito complicadas. As taxas de juro subiram. E o mundo entrou na mais grave crise desde a Grande Depressão dos anos 1930. Os países que mais sofreram com a crise foram os que, como Portugal, tinham maiores níveis de endividamento. Ou seja, a culpa não é da crise financeira internacional. A culpa é de todos os que desvalorizaram os riscos do endividamento e dos que favoreceram o seu crescimento.
A economia portuguesa apresenta hoje muitos sinais positivos de recuperação. Mas não tenhamos ilusões: está feita apenas uma pequena parte do ajustamento. Se a economia crescesse, tudo seria mais fácil. Mas o crescimento continua a ser o maior dos mistérios económicos. Ainda não é tempo para festas.
* Este título baseia-se na afirmação de Chuck Prince, CEO do Citigroup, When the music stops… things will be complicated. But as long as the music is playing, you’ve got to get up and dance. We’re still dancing, em 8 de julho de 2007. A música, e a dança, parariam um mês depois, quando rebentou a crise financeira nos Estados Unidos.
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