46. Farto da rotina, o Lopes saltou os degraus da escada à velocidade de vinte e cinco quilómetros por hora.
Habitualmente, descia-os devagar, um a um, e até os contava. Eram dezanove. O mesmo número que escolhia nas cautelas mas que não lhe tinha ainda trazido sorte alguma. O número de passos até à estação de metro usava-o para jogar no Totoloto, e o número de jornais diários à porta da tabacaria servia-lhe para o Euromilhões. Também estes de nada lhe tinham valido até à data, e não eram só as desilusões dos números que lhe iam minando a confiança na sua plêiade semanal de hábitos. Guardava um lenço de papel no bolso esquerdo do casaco, não fosse atacá-lo um espirro, mas em mais de onze anos nunca tivera ocasião de o usar, nem contra os espirros, nem para acudir a algum outro infeliz traído pelas glândulas nasais. Seria uma forma gloriosa de alargar o seu círculo de conhecimentos, estender a um membro da irmandade humana o lenço de papel oportuno no momento da aflição. Mas também o lenço não lhe granjeara uma nova amizade que fosse, porque não se cruzara até então com um fungador desprevenido, ou um repentino lacrimoso. Todos os que com ele partilhavam o transporte carregavam maços de lenços de papel. Um dia encontrou mesmo quem usasse um lenço de pano, mas tinha sido só uma vez. Guardava no bolso direito algumas moedas para o café que tomava ao balcão do snackbar por onde todos os dias passava, mas para além de lhe comprar o café, nunca as moedas tinham feito alguma coisa por ele. O pastel de nata do meio da manhã já há muito que tinha deixado de satisfazê-lo, e nem como pretexto para interromper o trabalho servia. As três canetas e os sete lápis arrumados em paralelo na secretária não lhe traziam elogios pela organização impecável que só poderia ser manifestação de um espírito persistente, não lhe traziam elogios absolutamente nenhuns, nem comentários, nem olhares furtivos. De que lhe tinha adiantado barbear-se todos os dias, ou calçar os chinelos quando chegava a casa. Que conseguira com a combinação de camisa azul-clara e gravata azul-escura que todas as quartas-feiras envergava. Ou com a gravata de riscas diagonais da sexta, e as meias cor de canela dos sábados. Que efeito tinham tido os duches de cinco minutos e a escovagem de dentes de três. Arregaçava sempre primeiro a manga direita da camisa, mas para quê, interrogava-se. Começava os livros pelo índice, dava nove voltas à chave, dobrava o pano da louça num triângulo, lavava os copos antes dos talheres, adormecia em posição fetal e virado para a porta. Quebrou o ramerrame finalmente com a cavalgada escada abaixo, ainda a medo e cheio de dúvidas. Podia já não lhe valer de nada. Mas acalmou-se porque já se habituara a ouvir o que se segue. Nunca é tarde.
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