sábado, 26 de dezembro de 2015

Pedro, não morras!

Quando me mudei para Houston, cheguei a uma casa cheia de caixas porque as minhas coisas já tinham chegado. O senhor que trabalhava para a minha senhoria, ao ver-me numa casa tão grande, com tanta coisa, perguntou-me quantas famílias iam cá viver; respondi que era só uma. Ele olhou para mim como se eu fosse estranha... Depois perguntou-me se queria ajuda para limpar a casa e arrumar as caixas. Disse que estava bem e ele pediu à esposa para me ajudar.

Nos fins-de-semana, lá vinha ela com a filha. Eu arrumava coisas, ela desfazia as caixas e arrumava-as na garagem. Ela é quatro anos mais velha do que eu, nasceu em El Salvador, não fala inglês, tem o sexto ano de escolaridade, mas nota-se que não é uma pessoa de muita cultura. Por exemplo, nem sequer sabia, ou se lembrava, que havia um país chamado Espanha e era por isso que a sua língua nativa era espanhol. A bem dizer, já nem escreve muito bem espanhol. Muitas vezes, quando ela me manda mensagens eu tenho de as ler em voz alta para perceber o som do que escreve porque ela dá muitos erros ortográficos.

Às vezes, fartava-me daquela rotina e arrastava-as para lojas e restaurantes. Um dia decidi que as limpezas tinham terminado e fomos ao Museu de Belas Artes ver uma retrospectiva impressionista. Ela adorou e ainda agora me pergunta muitas vezes pelo museu. Já me ofereci para a levar outra vez, mas como ela não vem cá tão frequentemente, não há muito tempo. Nos dias que tenho livres, não costuma ter disponibilidade. Na exposição expliquei-lhe que eram pessoas que pintavam os quadros à mão e que eram muito antigos. Perguntou-me acerca do custo dos quadros e eu disse que eram muito caros; ela observou que quem tinha pintado os quadros devia ter feito muito dinheiro.

Não, claro que não. A maior parte dos artistas viviam na pobreza ou da boa vontade de estranhos ou da família. São poucos os que têm o reconhecimento merecido enquanto vivos. Quando lhe expliquei isto, senti vergonha porque pensei que aqui estava eu, duma parte do mundo que é considerada mais civilizada do que a dela, e ela acha que o normal seria os artistas serem reconhecidos enquanto vivos. No lado civilizado, é normal ser-se reconhecido depois de se morrer. É uma civilização muito descivilizada, a nossa.

Como já aqui mencionei, um dos livros que quero ler é o novo livro de poesia do Pedro Mexia, "Uma Vez Que Tudo Se Perdeu". Ainda não o li porque o Pai Natal anda atarefado e eu disse-lhe que era melhor tratar dos meninos e das meninas primeiro, que eu tenho idade suficiente para esperar. É lógico que menti. Já comecei a ler porque já arranjei alguém que me fornecesse alguns dos poemas, mas eu quero o livrinho em papel. Não só gostei do que já li, como fiquei ainda mais curiosa para ler o livro todo. Claro que vou levar o Pedro Mexia outra vez para a cama e aconselho-vos a fazerem o mesmo, até porque está frio pelas vossas bandas. Entretanto, por curiosidade, vou lendo as críticas ao livro, como a do Observador, que mencionei anteriormente. O Expresso não terá uma porque não criticam obras publicadas por pessoas da casa.

Muita pose, pouca poesia
Enquanto poesia da perda e da evocação de um tempo passado, este livro de Pedro Mexia fica demasiado preso a uma estetização — e dispersa-se em ninharias

Este livro é composto por poemas que ocupam o terreno mais próprio de uma tradição originária da poesia: a do “canto” do que falta e do que se perdeu. E isso é explicitado num título de alcance programático: Uma Vez Que Tudo se Perdeu. Na perda, no desaparecimento e na despossessão reside o princípio consubstancial a toda a poesia. Se reduzirmos a sua história a uma poética restrita, ela segue desde o início em duas direcções: uma é a da celebração gloriosa, de onde nasce o hino, o canto de louvor; a outra é o canto do que declinou ou desapareceu, e neste caso temos a elegia, a poesia do lamento. O elegíaco fixa-se numa eterna repetição da origem e é a expressão lírica do trabalho de luto ou do trabalho da memória que, numa das suas modalidades (quando se dá um processo de interiorização do seu objecto), dá lugar à melancolia.

Estas são as questões genéricas onde se enquadram os poemas de Pedro Mexia. Temos agora de ver como é que elas são modalizadas. A elegia tem os seus topoi, as suas fórmulas-chave. Um desses tópicos é o ubi sunt, a interrogação dilacerada sobre o que foi e já não é, sobre o que já não se pode encontrar porque despareceu ou já não está no mesmo sítio. O exemplo típico do tópico do ubi sunt é o verso de Villon: “Où sont les neiges d’antan?”. Encontramo-lo, fatalmente, em vários poemas deste livro, e da maneira mais evidente neste que se chama A Casa dos Trinta: “Era um telhado, onde está?/ Janelas com adesivos, escadas/ a que faltam degraus, portas/ abrem para um desvão./ Havia uma varanda, alguém a desfez.”

António Guerreiro, "Muita Pose, Pouca Poesia", Público

Fiquei muito contente quando vi que o Público também tinha uma crítica do livro. Quer dizer, fiquei contente até começar a lê-la e perceber que não percebia o teor da crítica. Percebem o excerto acima? Eu até me esforcei para ver se tinha lógica. Por exemplo, imaginei que o Pedro Mexia tinha escrito um dicionário. Depois o António Guerreiro dizia "O Pedro Mexia escreveu um dicionário. Os dicionários são obras onde se encontram definições e sinónimos, como nos da Porto Editora. Encontramo-los, fatalmente, em várias entradas deste dicionário do Pedro Mexia." Era um dicionário, mas no do Pedro Mexia não podia haver definições, nem sinónimos, logo não podia ser um dicionário. Percebi ainda menos, mas não desisti.

Decidi consultar um profissional. No meu emprego anterior, e como eu passo a vida a falar de livros, palavras, poemas, um dos meus colegas sugeriu-me um livro, que agora faz parte da minha biblioteca, "How to Read a Poem and Fall in Love with Poetry", do Edward Hirsch. Fui refrescar a minha memória e li algumas partes:

A poem, as a manifestation of language and thus essentially dialogue, can be a message in a bottle, sent out in the -- not always greatly hopeful -- belief that somewhere and sometime it could wash up on land, on heartland perhaps. Poems in this sense, too, are underway: they are making toward something." [Paul Celan, citado por Hirsch]

[...]

The great Russian poet Osip Mandelstam, destroyed in a Stalinist camp, identified this experience. "Why shouldn't the poet turn to his friends, to those who are naturally close to him?" he asked on "The Addressee." But of course those friends aren't necessarily the people around him in his daily life. They may be the friends he only hopes exist, or will exist, the ones his words are seeking. [Hirsch]

[...]

Reading poetry is an act of reciprocity, and one of the great tasks of the lyric is to bring us into right relationship to each other. The relationship between writer and reader is by definition removed and mediated through a text, a body of words. It is a particular kind of exchange between two people not physically present to each other. The lyric poem is a highly concentrated and passionate form of communication between strangers -- an immediate, intense, and unsettling form of literary discourse. Reading poetry is a way of connecting -- through the medium of language -- more deeply with yourself even as you connect more deeply with another. The poem delivers on our spiritual lives precisely because it simultaneously gives us the gift of intimacy and interiority, privacy and participation. [Hirsch]

Desta leitura concluí que o que o António Guerreiro queria dizer era: "Eu li o novo livro do Pedro Mexia, era sobre perdas, mas não me identifiquei com nada do que ele escreveu. A garrafa deu à costa, mas o terreno do meu coração não era fértil para a mensagem que continha. O problema não era o livro em si; era o autor, que é um poseur."

Como diz o Hirsch, apreciar um poema é uma relação a dois, tem de haver vontade do autor e do leitor. Do autor houve vontade porque o livro existe; do leitor não me parece ter havido nenhuma. E o problema não era o livro em si, porque o António Guerreiro até diz que o livro é formuláico. Ora se preenche a fórmula perfeitamente, então deduzo que é um livro bem conseguido. Não, não é, porque o Pedro Mexia não podia ter sentido aquilo, ele é um "poseur".

Esta coisa do poseur incomoda-me por, pelo menos, duas razões. A primeira é a óbvia: "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente." [Fernando Pessoa]. A segunda é inerente ao próprio Pedro Mexia: quem o lê sabe que uma constante da sua escrita é a perda, nostalgia, inadequação, etc. Isso sobressai nas peças de teatro, na prosa autobiográfica, até em entrevistas. O tópico do livro não me parece ser fruto de uma completa pretensão do autor; acho que é mais uma manifestação da sua maneira de ser. Ele por vezes é tão mórbido e negativo, que eu frequentemente penso "Ah, pá, a colheita de 1972 foi mesmo boa. Diziam-me que eu era tão aborrecida, triste, e lenta. Até a minha mãe dizia que eu era boa para ir buscar a morte."

Enquanto lia a crítica, lembrei-me do que Christopher Rothko disse acerca do pai, Mark Rothko. Os quadros mais famosos de Rothko são extremamente grandes e algumas pessoas pensam que o tamanho da obra reflete uma certa arrogância ou presunção do pintor, quando o tamanho da obra não tem nada a ver com o pintor, tem a ver com o espectador: os quadros de Rothko são grandes porque quem os vê é grande e para que a obra consiga criar uma experiência completa para o espectador, os quadros têm de ocupar grande parte do campo de visão do espectador. Foi Mark Rothko que disse "A painting is not a picture of an experience; it is an experience."

As pessoas olham para um Rothko e pensam que vêem o pintor, quando na realidade vêem o que querem ver. Rothko passou toda a sua obra a tentar esconder-se, para que a experiência viesse do espectador e não do pintor, a obra era um portal para o que estava contido no espectador. Ou simplesmente, como mencionava a Anaïs Nin, em "The Seduction of the Minotaur", "We do not see things as they are; we see them as we are." Similarmente, um poema é um portal: aquilo que nós sentimos ao lê-lo depende de nós na altura; até quando o voltamos a ler algum tempo mais tarde temos uma experiência diferente porque nós somos pessoas diferentes -- mas é necessário que nós queiramos ter a experiência. Temos de dar algo de nós para podermos receber.

E o que são ninharias? Talvez os momentos mais felizes da minha vida tenham sido aqueles que passei com a minha mãe à beira-mar a apanhar conchas -- ninharias para vós. Na minha casa há areia e conchas de quase todas as praias que eu visitei; ajuda que eu tenha ido muitas vezes à Figueira da Foz, que até é a praia da foto do livro do Pedro Mexia. Quando eu morrer, a minha colecção de conchas não terá significado para ninguém, mas para mim são pedaços de experiências que eu tive e que continuam a ter significado. Concedo-vos que, no grande esquema das coisas, a importância que a Rita dá a ninharias é completamente irrelevante. Mas que importância se daria às ninharias do Pablo Neruda, um Prémio Nobel da Literatura? Ele chegou a escrever um livro inteiro de odes a coisas comuns (tenho-o aqui mesmo ao lado). O livro começa assim:

Oda a las cosas

Amo las cosas loca,
locamente.
Me gustan las tenazas,
las tijeras,
adoro
las tazas,
las argollas,
las soperas,
sin hablar, por supuesto,
del sombrero.

O que diria António Guerreiro das ninharias do Neruda? Também são o produto de um poseur?

Suponho que o que vos quero dizer é que não percebo porque é que a crítica do António Guerreiro é tão decisiva em dizer que o livro é mau, quando um livro de poesia é tudo menos decisivo. Recorda-me as notícias que li acerca da morte de Herberto Hélder, onde tanta gente dizia que era um poeta fenomenal, um dos grandes, até os livros que tinham recebido más críticas quando foram publicados eram agora perfeitos.

Se é preciso alguém morrer para um livro ser perfeito, o problema não está no autor; está claramente nos leitores, especialmente nos críticos. Altere-se essa fórmula: aprecie-se a grandeza em vida. Enquanto isso não acontecer, eu já decidi que o Pedro Mexia está proibido de morrer. Só morre quando eu lhe der autorização para tal. A última coisa que eu quero é ter de ler um monte de artigos a dizer o quão grande era o Pedro Mexia: uma grandeza que parecia não existir no dia anterior, o último em que esteve vivo.

4 comentários:

  1. Rita, não precisas de morrer para esta crítica (e a crítica à critica) dever ser considerada magistral. Na perspetiva do leitor, naturalmente :-)

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  2. Tenho passado demorados momentos em frente de vários quadros de Rothko, alguns dos quais no "santuário" que ele concebeu na Phillips Collection em DC.
    Mas a minha persistência não decorre senão da, para mim, intrigante admiração que as obras deste artista provocam em tanta gente. Mais do que compreender Rothko tento compreender os que o veneram.
    Afirma José Gil em "Sem Título" que os quadros de Rothko chegam a desencadear tal emoção nos espectadores que os leva às lágrimas.

    Leio este seu comentário, e, confesso-lhe desanimado, não veio dele a luminosidade que me permita vislumbrar a centelha de génio que a Rita garante estar por detrás das suas obras.

    Afirma a Rita que "Rothko passou toda a sua obra a tentar esconder-se, para que a experiência viesse do espectador e não do pintor, a obra era um portal para o que estava contido no espectador."... e que, disse Rothko "A painting is not a picture of an experience; it is an experience."

    Em que é que, neste aspecto, Rothko foi assim tão notável quando comparado com outro artista plástico à sua escolha?

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    1. Rui, o Rothko foi bastante inovador no seu percurso, a sua obra não se cingia a apenas mostrar ao espectador uma tela; ele compunha o espaço onde as telas e o espectador se inseriam. Por exemplo, havia séries de quadros que eram para ser expostos conjuntamente e estavam dispersos no espaço de forma planeada. O culminar do trabalho do Rothko é a Rothko Chapel, uma capela não denominacional que foi construída em Houston, encomendada pelos milionários De Menil. O espectador não estava em frente de uma obra, mas dentro dela.

      Tenho de terminar de escrever o que eu aprendi acerca dele e talvez isso responda a algumas das suas perguntas. Mas é verdade o que José Gil escreveu: há pessoas que se sentem felizes, outras que ficam comovidas quando na presença de um Rothko ou de um espaço Rothko. A questão da cor, por exemplo, é interessante, pois não é verdade que os quadros escuros sejam fruto da depressão do pintor, até porque os últimos dois anos da sua vida foram extremamente produtivos, apesar de ele estar deprimido. A minha impressão do que o filho disse é que a depressão afectava sobretudo a vida pessoal, mas não tanto o seu trabalho.

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  3. Talvez um destes dias vá até Houston.
    Falta-me, quanto a Rothko, pelo menos, essa experiência
    Até lá, continuo na mesma.
    Entretanto, obrigado pelo seu esforço.

    Bom Ano! Aliás, Bons Anos!

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