Entre, entre, fique à vontade. Então com licença. Faça favor. Bondade sua. Sente-se, faça de conta que está em sua casa. E que linda casa, minha senhora. É muito gentil, faço o que posso. Não sei como consegue ter tudo tão arrumadinho. Ai, comigo é assim, não gosto de nada fora do sítio. E aquelas plantas, tão viçosas, as minhas secam logo. É preciso saber regá-las. Pois é, para tudo é preciso saber. É bem verdade. E com as plantas ouvi dizer que não é só regar, tem que se falar com elas. Ai sim, eu só as rego, e limpo-lhes o pó, às vezes ponho-as na varanda. Por falar em varandas. Diga. A sua deve estar tão limpa como o resto da casa. Pois está, um brinquinho, ainda hoje a esfreguei com lixívia. Bem me queria parecer. É mais uma coisa que é preciso saber, se quiser digo-lhe qual é a lixívia que costumo usar. Depois escrevo num papel. É que não serve uma qualquer, e a vassoura também não. Mais uma coisa que é preciso saber. É isso mesmo. Eu confundo-me sempre com as lixívias, agora há tantas marcas. A que eu uso é muito boa, e tem cheiro. A alfazema, não é. É, como é que adivinhou. É que a minha varanda fica mesmo por baixo da sua. Não me diga. Digo, digo. Então é minha vizinha. Já vai quase para três meses. Olhe que nem reparei. A senhora sai pouco de casa. Saio pouco, pois é, em casa há sempre que fazer. Eu sei, na minha é a mesma coisa. Agora nem toda a gente dá importância, querem é ir aos cafés, nem as camas fazem. Mas olhe que eu ouvi dizer que é melhor não as fazer. Que disparate. É verdade, parece que há bichos e assim crescem menos. Era o que faltava, na minha casa não há bichos, tenho tudo muito limpo. Mas estes bichos não se vêem, são muito pequenos. A senhora está a dizer que eu não sei limpar a minha casa. De maneira nenhuma. Acha que eu ia deixar bichos nos lençóis. Com certeza que não, mas estes só com microscópio é que se vêem. Pois eu tenho um microscópio, o meu mais velho teve que comprar um para a escola. Então vá ver se tem bichos ou não. Já vi, vejo todos os dias. Ah, já sabia. Eu de limpezas sei tudo. E consegue ver-se livre deles. Consigo. Não sei, o microscópio do seu rapaz não deve ser lá muito bom, ou estará embaciado. A senhora está outra vez a dizer que eu não sou limpa. Não é isso. É sim senhora, é o microscópio do meu filho que está embaciado, são os meus lençóis que estão cheios de bichos, a senhora acha que eu deixo estar alguma coisa suja em minha casa. Ó minha amiga, não acho nada. Não me chame sua amiga, sua galdéria. Galdéria, eu. Sim, deve passar a vida na rua ou no centro comercial, se nem sequer sabe escolher lixívias. Bom, eu vinha cá exactamente para falar da lixívia. Qual lixívia, ainda nem lhe disse a marca. A lixívia que a senhora usa na sua varanda. Ah, vou buscar a garrafa para lhe mostrar. Não é preciso, eu vinha cá para lhe dizer outra coisa. Então diga. A minha varanda fica mesmo por baixo da sua. Ai fica. Pois é, e todos os dias a sua lixívia vai lá parar. Nem me tinha dado conta. E por isso todos os dias tenho que esfregar a varanda. Ah, então deve estar muito limpinha. Ora aí é que está o problema. Qual problema. O que me traz aqui. O que é. Eu queria pedir-lhe se podia ter mais cuidado quando despeja a lixívia da sua varanda. Mas se até lhe estou a fazer um favor, fica com a sua varanda limpa. Mas eu não quero favores. Ora essa, temos que ser uns prós outros, é assim que se faz boa vizinhança. Não quero favores nenhuns. Então porquê. Isso é cá comigo. Olhe, eu não vou deixar de lavar a minha varanda por causa disso. Mas tenha mais cuidado. Faça o favor de sair. Não faço favores a ninguém. Olha a galdéria.
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