segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O "Excel de Centeno"

Na semana passada, houve um post n'O Insurgente e uma peça de opinião no Económico acerca do "Excel de Mário Centeno". O modelo que Mário Centeno usa, que espero que não seja apenas uma folha de cálculo de Excel, já me intriga desde Outubro de 2015. Entretanto, já tive oportunidade de concluir algumas coisas acerca do mesmo. (Tentei não usar uma linguagem muito técnica, talvez assim mais pessoas compreendam a natureza das minhas dúvidas.) Julgo que seria muito valioso se os jornalistas questionassem o Ministério das Finanças acerca da validade do modelo usado.
  • A cauda abana o cão, não é o cão que abana a cauda: normalmente, num modelo desenvolvem-se relações entre efeitos (as variáveis dependentes) e causas (variáveis independentes), sendo algumas destas últimas instrumentos que o governo tem à disposição para fazer política económica. O normal é o modelo estar construído de forma a que se possa estimar o que acontece às variáveis dependentes quando se alteram as variáveis independentes. Pela forma como nos são apresentados os resultados, sabemos que o modelo tem uma causalidade invertida--são as conclusões desejadas que determinam os instrumentos.
  • Má endogeneidade: as várias partes da economia têm de funcionar conjuntamente, isto é, quando há um choque num sector, esse choque deveria ter efeitos noutros sectores. A forma como os resultados são apresentados leva-me a crer que cada sector foi desenvolvido independentemente dos outros.
  • Parâmetros instáveis: cada vez que o governo analisa um cenário novo, os parâmetros são modificados para dar suporte à conclusão desejada. Os parâmetros não reflectem a realidade da economia; reflectem as conclusões desejadas. Só assim se pode justificar que o mesmo modelo tenha dado todos os resultados até aqui apresentados.
  • Pressupostos irrealistas: normalmente, utilizam-se pressupostos que representam a realidade. É quase certo que o valor exacto esteja errado, mas não é claro saber se está errado porque o número é baixo ou alto; ou seja, presume-se que o valor verdadeiro esteja na vizinhança do valor usado. No caso do modelo que Mário Centeno usa, há claramente um enviesamento optimista. Há vários pressupostos que sabemos, à partida, estarem completamente errados; por exemplo, usar uma taxa de juro de curto prazo negativa, ou presumir uma descida no preço do petróleo ao mesmo tempo que se presume que a cotação do dólar/euro não mudará, ou presumir uma taxa de inflação de 2% quando o desemprego continua alto, ou presumir grandes aumentos de produtividade do trabalho no curto prazo.
  • Calibração: o modelo não foi calibrado, isto é, ninguém se deu ao trabalho de meter um cenário histórico e ver se as conclusões do modelo estavam próximas da realidade. Repare-se que se calibrarmos um modelo e depois modificarmos os parâmetros do mesmo, o modelo passa a ser outro e teria de ser calibrado outra vez.
  • Análise de sensibilidade: é prática comum apresentar cenários alternativos ao cenário base e que ilustram a sensibilidade dos resultados do cenário base a mudanças de parâmetros. Isto serve para avaliar o risco associado com as previsões do modelo e permite-nos ter uma ideia melhor do nível de confiança que devemos ter nas previsões do cenário base. Quase nunca há uma discussão do risco das previsões.

Podemos elaborar acerca do risco das previsões. Consultando o Parecer relativo às Previsões macroeconómicas incluídas no Projeto de Plano Orçamental 2016, publicado pelo Conselho das Finanças Públicas (CFP), é-nos dito que as previsões passadas (1995-2015) do Ministério das Finanças foram demasiado optimistas, i.e., tiveram um enviesamento no qual as previsões foram sempre melhores do que a realidade. Isto é uma forte suspeita de que o modelo de Mário Centeno também sofre do mesmo problema--previsões enviesadas. O risco é que a economia irá ter um resultado muito aquém das previsões.

Há uma escolha metodológica com a qual discordo no parecer do CFP: ao mesmo tempo que nos dizem que as previsões são enviesadas, os intervalos de confiança publicados no parecer são centrados na previsão, isto é, presumem que este ano as previsões não são enviesadas (Caixa 2, Gráfico 4). É pena que tenham decidido por esta via e tenham ignorado o enviesamento. No mínimo, teria sido aconselhável apresentar também os intervalos de confiança com a correcção de enviesamento para ver qual a sobreposição.

19 comentários:

  1. Se Bruxelas deixar passar esta aldrabice do Costa está provado que não mudou nada desde 2008. O PS comporta-se da mesma maneira porque não lhe convém aprender nada. Mas se as instituições europeias ignorarem o que se está a passar em Portugal, significa que nos vão deixar cair na bancarrota de novo, e assim de nada serviu o Pacto Orçamental. É mais um descrédito para a zona euro.

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  2. O Excel de Mário Centeno tem estes defeitos todos, já o Excel do Vítor Gaspar que raramente ouvi criticar previu tudo errado, tudo fora dos intervalos de confiança. Deixem o Mário Centeno trabalhar e depois se os resultados não forem estes critiquem, mas primeiro deem o benefício da dúvida, ou ele se aplica a uns, mas não a outros.

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    1. "o Excel do Vítor Gaspar que raramente ouvi criticar previu tudo errado"

      Raramente ouviu criticar o Excel de Gaspar? Não será melhor ir a um otorrino?

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    2. Alberto Silva, se o modelo é mau e é tão obviamente mau, temos a obrigação de criticar. Os modelos servem para reduzir o risco e evitar o desastre. Este modelo não faz isso.

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  3. Rita mas porquê essa preocupação com a sofistificação do "Excel" do Centeno? O Gaspar supostamente tinha uns Exceis óptimos, provavelmente fez essas análises todas e os resultados também foram completamente enviesados... Supostamente o que falhou foram os "multiplicadores". Como um técnico honesto teve a decência de se demitir depois de perceber que a "teoria" não correspondia à "prática", mas sinceramente o que menos me preocupa é o Excel do Centeno. Preocupa-me muito mais a sua capacidade de influência junto do BCE e das agências de notação do que o VBS e as macros...

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    1. É por isso que eu falo em calibração. Se enfiarem um cenário ou dois históricos nos modelos e o resultado for completamente diferente do que aconteceu na realidade, têm logo maneira de ver que os multiplicadores estão errados. Não precisam de esperar pela realidade.

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    2. Obrigado por me responder Rita.
      Eu por feitio e (talvez...) por formação costumo ser a favor da rigor técnico pelo que os argumentos da Rita em relação à fiabilidade do modelo colhem simpatia da minha parte.

      Contudo, neste caso específico acredito que ser excessivamente exigente com o modelo poderá não ser a melhor decisão por vários motivos:
      - o que fazer caso o modelo afinado entre em colisão com as promessas eleitorais? Deveriam ser quebradas as promessas eleitorais pelo facto de o modelo as contradizer?
      - falta de fiabilidade das hipóteses assumidas. No início de 2015 o barril de petróleo andava pelos 50 dolares, passado 1 anos está nos 30 dolares. Acredito que seria de todo impossível prever esta variação com 1 ano de antecedencia e estou a falar de uma das variaveis principais. tendo em conta a variação de aproximadamente 20 dolares do preço deveriamos testar um cenario com um intervalo de preços de +20 dolares a -20 dolares? Obviamente que os resultados seriam completamente diferentes e as conclusões a que se chegariam seriam completamente diferentes.

      Por estas razões acredito que efetivamente não faz sentido estar demasiado focado na fiabilidade técnica do modelo pois na realidade do meu ponto de vista o que acaba por ser relevante do ponto de vista prático é se a Comissão o aceita ou não e quais as consequências caso não o aceitem.

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    3. Acho que a questão que me coloca é "O que fazer se os políticos que fazem as promessas eleitorais são tão cobardes que não querem assumir o risco do que prometem?" Eu não sou política, sou economista, e construir modelos é a minha profissão. Já tive situações em que os resultados do meu modelo iam contra o que os meu chefes queriam e eu tive de dizer aos meus chefes os limites do que o meu modelo podia fazer. Acima de tudo, quem faz isto tem de ter integridade profissional.

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  4. Muito obrigado, Rita, por contribuíres decisivamente para a arrumação mental e suporte teórico quanto às minhas inúmeras dúvidas "instintivas" quanto ao modelo utilizado :-)

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    1. Obrigada eu, Martim. Ainda bem que achaste um bom contributo.

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  5. Rita, tens razão. Mas a questão agora não é saber se as contas estão ou não bem feitas. Sabemos que não estão. A questão é saber se esta forma de lidar com a Comissão Europeia é ou não politicamente adequada.

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  6. Bem, num orçamento em que o adiamento do pagamento da dívida conta como uma redução de despesa, eu diria que as tuas considerações sofrem de excesso de sofisticação....

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    1. Fiquei admirado a ler isto. Isso é verdade?

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    2. Não sei se tem alguma relação com o comentário do João, mas metade da redução de despesa é em "transferências de capital" que não vi detalhadas.

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    3. Caramba, o que quererá isso dizer? Parece-me que teremos de esperar pela proposta de OE para perceber algumas destas coisas.

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    4. "o adiamento do pagamento da dívida conta como uma redução de despesa"
      - Só se estiver a justapôr conceitos de contabilidades diferentes a partir de um "framework" secreto e esta é a maneira polida de dizer que esteve a tentar vender "banha da cobra".

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  7. A partir de agora é com isto que a geringonça vai ter de ser comparada. Em ano de eleições a despesa baixou e Portugal conseguiu crescer e reduzir a sua dívida ao mesmo tempo. No que dependeu do governo anterior, as coisas correram bem. Ao Banif têm de ser assacadas responsabilidades primeiramente à gestão que arruinou o banco, e quanto à "gestão política" da coligação de centro-direita, esta venceu as eleições e queria governar portanto, demorando mais ou menos tempo, iria ter de resolver o problema do Banif na mesma. Já o PS só quer o bom da política, que é gastar dinheiro, e ainda não parou de culpar o governo anterior pelas dificuldades do país que os outros também apanharam e ainda pior.

    http://www.tsf.pt/economia/interior/defice-de-2015-ficou-500-milhoes-abaixo-do-previsto-4998552.html

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  8. No que diz respeito a Excel martelado o que me preocupa é a notícia de que a CMVM autorizou o prolongamento da Deloitte como auditora da CGD e o precedente que isso abre. Se isto não é razão para demitir a direção da CMVM então eu não sei o que é. Depois dos milhares de milhões que o país já gastou com os conluios entre as auditoras e as grandes empresas portuguesas permitir a manutenção destas situações que favorecem a falta de transparência é inacreditável. Deixo a notícia caso ainda não tenha conhecimento.
    http://economico.sapo.pt/noticias/cmvm-autoriza-caixa-a-prolongar-mandato-da-deloitte-ate-2017_240801.html


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  9. "A forma como os resultados são apresentados leva-me a crer que cada sector foi desenvolvido independentemente dos outros"

    Se os valores foram apurados sector a sector, ainda bem. Se, entre uns e outros há disparidades incompreensíveis, ainda bem, porque os comportamentos são assim. Se está à vista que existe trabalho de harmonização a fazer, ainda bem e temos por cá quem domine a matéria. Se este tipo de discrepâncias está à vista, ainda bem, porque são evidência do contrário do que é sustentado no postal - NÃO são números martelados e assim é que está certo, porque a realidade não deve ser inventada, antes explicitada. Claro que isto é um pouco ofensivo para os que vendem modelos supostamente perfeitos. Paciência...

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