quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Reportagem 16

Esta é uma da série "Reportagem", que vem a propósito de uma irritação que tem que ser universal sob pena de o mundo não fazer sentido, a saber, a irritação de sequer ouvir falar de reuniões de condomínio (quando digo que vem a propósito não é que venha a propósito mas simplesmente é outra coisa, que pode ser irritante mas pelo menos não é uma reunião de condomínio):


Reportagem

De acordo com os últimos dados do INE, divulgados esta manhã, e pela primeira vez desde que há registo, ou seja, desde 1348, quando D. Baltazar de v., possuidor de considerável reserva de penas de ganso, as mais satisfatórias para uma escrita ao correr da pena, provenientes de uma granja onde uns primos se dedicavam à investigação de modos de assegurar o melhor conforto, macieza e virtudes térmicas das roupas de cama, isto numa época em que o algodão não fizera ainda a sua entrada em pleno em terras europeias e não revelara ainda as suas míticas possibilidades poupando gansos e várias outras aves domésticas a uma depenação não apenas dolorosa mas de consequências estéticas deploráveis e jogando certamente papel importante no incentivo à busca de instrumentos de escrita alternativos e de mecânica mais sofisticada, testemunhos do carácter inventivo e sagaz do engenho humano que não fica satisfeito com soluções que, funcionando, apresentam não obstante aspectos que podem ser melhorados tornando os processos em que estão envolvidas mais eficientes, consumindo menos tempo e menos recursos, imagine-se o que é ter que mergulhar uma pena num tinteiro quase a cada palavra que se escreve e a meio de quase todos os advérbios, ter que esperar que a tinta seque ou ter que evitar que a escrita se transforme em borrão com algo que os mate, aos borrões, deviam ser ferozes e odiosos, exasperantes e aborrecidos, os borrões para se querer matá-los antes mesmo da nascença, e imagine-se o que era sujeitar os ouvidos ao raspar da pena sobre o pergaminho ou sobre o vellum, raro ainda o papel e por isso caro, o vellum feito a partir do velo do cordeiro, do carneiro ou da ovelha que só é de ouro nas fábulas e nas epopeias antigas e não era, pois, assim tão raro e assim tão caro nesse ano de 1348 que foi o ano em que D. Baltazar de v. gastou parte considerável da sua reserva de penas de ganso a registar com minúcia, este prelado que à direcção das almas e dos dízimos teria preferido a ocupação de copista e iluminador, artes que lhe foram vedadas pela sorte do seu nascimento em terras pouco dadas às letras ou às iluminuras e onde existiria talvez um livro por cada cem mil habitantes, fechados todos a sete chaves, os poucos livros e não os muitos habitantes, mais por superstição do que por lhes ser atribuído grande valor, toda a gente sabe que é nos livros que estão os feitiços e que retirar palavras de imagens é uma espécie de bruxaria, imagens salvo seja, gatafunhos que se deveriam a uma galinha tonta se não se devessem a um demónio astuto, uma minúcia nascida da melancolia de uma vocação frustrada e que à acédia substituiu a azáfama de um qualquer trabalho, todo o trabalho é útil, o do repórter mais ainda desde que saiba veicular informação relevante em poucas frases e esta é só uma, está cumprido o objectivo. 

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