Ontem à tarde, deixei um post no facebook a queixar-me por estar há uma hora preso num comboio, entre estações. A razão para a paragem, disseram-nos pelo altifalante, era que, aparentemente, alguém se tinha sentido muito mal no comboio à frente do nosso. Uma hora num ambiente pestilento, húmido, em pé, empurrado por mochilas e corpos estranhos, com o espaço estritamente necessário para mexer o polegar e escrever o post no facebook. Nem sempre é assim. Nem sempre tenho espaço para conseguir mexer o dito polegar. Também nem sempre dá para entrar no primeiro comboio que chega à minha estação, no sudeste de Londres, porque geralmente está cheio e não entra mais ninguém. Acabo por entrar no segundo ou terceiro. Vou tipicamente encostado à porta de saída, sem precisar de me segurar a nada porque o comboio vai de tal maneira compacto, que é mesmo impossível tropeçar. E, não é uma caricatura, várias vezes não tive sequer o espaço para alcançar o meu bolso de dentro do casaco e sacar do telemóvel. Estava portanto a falar de ter estado fechado uma hora no comboio da tarde de ontem. Nessa manhã, o comboio onde ia levou pouco menos de uma hora para fazer um percurso que, geralmente, demora 15 minutos. A desculpa, dita pelos mesmos altifalantes, era a de que havia um desmoronamento de terras numa vila fora de Londres (a cerca de 20/25 kms de onde vivo). Hoje de manhã, o comboio, aquele onde consegui entrar, ficou parado com as portas abertas cerca de meia hora na minha estação, porque, razão dita pelos mesmos altifalantes, o sol estava a bater nos ecrãs que permitem aos maquinistas controlar as entradas de saídas do comboio, pelo que as portas teriam de ser fechadas manualmente. A inusitada desculpa até pode surpreender o nosso jornal Expresso - mas pouca gente que vive em Londres e usa os transportes públicos se surpreende.
Há uns anos, havia uma ferramenta maravilhosa na internet que, com base em palavras fornecidas pelo utilizador, gerava automaticamente uma tese de doutoramento em filosofia pós-moderna. As desculpas dadas pelas empresas que gerem os transportes públicos em Londres têm também todo o ar de serem geradas aleatoriamente. Como os atrasos são diários, há evidentemente desculpas que se repetem. As mais comuns são "signalling problems" e "engineering works", catch-all phrases que foram absorvidos no léxico londrino sempre que alguém quer dar uma desculpa reles que ninguém pode acreditar (sim, é o equivalente londrino ao "o gato comeu o meu trabalho de casa"). Para dar uma ideia da dimensão do uso da desculpa dos "engineering works", é preciso notar que eu vivi um ano e meio noutro bairro do sul de Londres, chamado Canada Water, que é servido por um serviço de overground (é, basicamente, uma linha de metro, mas de superfície). Eu nunca vi este serviço funcionar ao fim de semana. Sempre, mas sempre, por causa de "engineering works". Sem mais. O que há mais é desculpas. Pós-modernas, também.
A exploração dos transportes públicos de Londres, toda ela concessionada a várias empresas privadas, é extraordinariamente cara para o utilizador final, mesmo quando é tido em linha de conta o custo de vida em Londres. O passe de alguns dos meus colegas, que vivem nas imediações de Londres, custa cerca de 3600 libras por ano, ou cerca de 5000 euros. Por outro lado, é o sistema mais ineficiente, caótico, lento, irresponsável e insensível ao cliente que eu já vi - sim, meus caros, os transportes de Lisboa (ou de Dublin, a terceira cidade onde vivi) são infinitamente melhores. O grande aumento demográfico assistido no último ano, ou dois anos, é naturalmente parte da razão, mas até aí se nota o limite da concessão de monopólios naturais a empresas privadas: se a procura aumenta, seria de esperar que, num mercado competitivo, a oferta crescesse um pouco. Mas não. O número e frequência dos serviços tem-se mantido igual, pelo menos nas zonas de Londres que conheço melhor. Na referida Canada Water, tipicamente andava de autocarro. Novamente, não era possível entrar nos primeiros autocarros (de dois andares) por estarem sempre cheios. Todos os dias. Sem resposta por parte da empresa que gere aquela carreira de autocarros (sim, diferentes carreiras são geridas por diferentes empresas).
Não quero com isto eu próprio fazer uma tese, até porque nem estou familiarizado com o detalhe da regulação dos serviços de transportes nesta cidade. A minha visão é apenas a do utilizador - alguns argumentariam que é a única visão que importa. E essa visão é bastante má. Só não é pior porque, de todo, não sou dos que mais sofrem: a minha viagem, como já disse, e, descontado os atrasos, é suposto demorar 15 minutos. Daí conseguir suportar estas agruras com alguma bonomia.
«(...)mas até aí se nota o limite da concessão de monopólios naturais a empresas privadas(...)»
ResponderEliminarNão sei por que hão-de os transportes serem considerados um "monopólio natural". Afinal, como bem refere, até não existe um monopólio nos autocarros de Londres. Além disso, a origem do transporte colectivo em Londres está no sector privado, o mesmo sucedendo, diga-se, nos comboios britânicos, nacionalizados apenas depois da vitória dos trabalhista em 1945.
Eu sou do tempo da London Transport em Londres, empresa pública que incluía os autocarros e o metro, e devo dizer-lhe que, muitas das queixas que aqui apresenta, já na altura se manifestavam. O planeamento central do "monopólio natural" deixava, de facto, muito a desejar.
Mas entendo, claro, os reparos que faz à falta de resposta dos operadores ao problema do excesso de gente em Londres (sim, eu acho que Londres está sobre-populada, no que estou longe de estar só).
Boas viagens! ;-)
Sejamos claros: o problema dos transportes não advém de serem públicos ou serem privados. Mas tal como existem problemas de "mismatched incentives" quando a gestão é centralizada e pública, existem os mesmo tipos de problemas (embora com incentivos diferentes a afetar outras áreas) quando é descentralizada e privada.
EliminarSeria muito bom que houvesse uma "magic bullet" que resolvesse todos os problemas, fosse essa a gestão pública ou gestão privada. Não há. O que temos aqui é um caso normal de politica: afectação de recursos públicos para suprir necessidades públicas. E sim, esses recursos serem afectos a entidades públicas tem desvantagens. E sim, esses recursos serem afectos a entidades privadas tem desvantagens (diferentes possivelmente das anteriores, mas não menos reais).
A visão de que teríamos um paraíso (ou pelo menos uma solução uniformemente melhor ) "se fosse público" ou "se fosse privado" é uma balela que é geralmente vendida para evitar confrontar os problemas e pagar pelas soluções. Claro que a coisa é complicada por problemas de agência (com vantagens diferenciadas para os decisores politicos pelas duas opções: melhor controlo e controlo mais direto versus menor responsabilização e possibilidade de contactos para um "paraquedas dourado" aquando da saída de funções).
Pura corrupção. Se é para concessionar, deixa-se apodrecer. Se é para aumentar as margens, nada se exige de qualidade ou cobertura/dimensionamento das redes. Se queremos o voto sindical, tudo e um par de botas para os funcionários. Etc, etc, etc.
ResponderEliminarO diabo está nos detalhes e no limite se o Estado puder despedir, explorar, poupar, gerir com eficiência, etc. E o gestor for competente até podem nacionalizar tudo.
Toda o esquema de reprivatização dos transportes britânicos é um "case study" de como NÃO fazer. E a culpa não é só dos conservadores (uma parte significativa das privatizações tem a "mão" do New Labour). Pegando no caso que considero mais gritante / incompetente, privatizaram as linhas (Railtrack), o que resultou em subinvestimento na manutenção. Salvo erro agora é (de novo) público, depois de um já anterior resgate após (outra) privatização falhada. Que lição se pode retirar? Não se privatizam (ou concessionam) infraestruturas que representam monopólios naturais de interesse público (da mesma forma que cá ainda será do meu tempo a privatização da REN dar bronca).
ResponderEliminarJá agora, confirmo valor do passe apontado pelo Luís Gaspar: quando morava em Epsom (30 km a sul do centro de Londres) e a minha mulher dava aulas no King's College, pagavam cerca de 160 libras/mês de passe - o que dá perto de 2000 libras. Como ela podia andar até à universidade (era só atravessar a ponte a partir de Waterloo), não precisava do passe combinado - esse ficava por mais 500 libras/ano.