quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A contrapartida

Should I stand amid the breakers?
Or should I lie with death my bride?

~ Song to the siren

Ele tem mais de 60 anos, não sei ao certo. É obeso, sabe que devia perder peso, o seu cabelo totalmente branco, as roupas são largas, por vezes sujas, nada que indique o seu verdadeiro estatuto social: é rico, não muito, apenas milionário, mas o suficiente para se dizer que pertence ao 1%. Não é assim tão difícil pertencer ao 1%, nos EUA. É especulador em activos imobiliários, é a contrapartida. Quem compra uma casa nos EUA precisa de uma contrapartida, alguém que assuma o risco, ele é um deles, um dos que assume essa contrapartida de risco, um especulador. Quando alguém não paga a casa, as contrapartidas pagam por eles porque assumem o risco. Aquelas pessoas que os portugueses me dizem ser pessoas horríveis, parasitas dos seres bons que habitam por estas bandas. Eu ouço-vos e vejo a humanidade presa por um fio.

Ontem apanhei uma conversa cruzada no meu gabinete. Falava dos seu planos imediatos: fechar a empresa, viajar, talvez passar o verão na Dinamarca, preocupava-se com o futuro do seu empregado. Gosta de trabalhar. Fá-lo-á até não poder mais, o que está para breve. Tem cancro, está a espalhar-se, não sabe quanto tempo lhe resta, mas na sexta-feira irá receber os resultados de uns testes médicos. Está cândido, não sabe se precisará ou quererá quimioterapia. Hoje apanhou-me no corredor e meteu conversa. Disse-me que era inacreditável a força de Donald Trump, que tinha ganhado as eleições no Nevada. Não confia nos Republicanos; já vota em Democratas há pelo menos 20 anos, mas Trump diver-te-o, como a mim. Sugeri-lhe que fosse a Las Vegas, disse-me que não, detestava os casinos, estavam cheios de fumo de tabaco.

Os casinos de Las Vegas são sítios deprimentes. As pessoas vão para lá para se esquecer da vida, do presente, do que têm, do que não têm... No Nevada ele só gostava do Norte, de Lake Tahoe. Perguntou-me se eu tinha ido ao Grand Canyon, disse-lhe que sim, é magnífico. Perguntou-me se eu tinha ido a Los Angeles, disse-lhe que sim, que tinha ido ao Museu de J. Paul Getty, que ele adora. Eu também. Foi lá que descobri as fotos de Eliot Porter. O que é que ele iria fazer este fim-de-semana, perguntei-lhe. Disse-me que queria ir ver uma exposição nova no Museu de Belas Artes sobre carros. São antigos, mas conservados imaculadamente, design italiano. Disse-lhe que talvez ninguém os tivesse usado e que era por isso que estavam tão bem conservados, mas que também queria ver essa exposição, pois vou ao museu frequentemente. Os italianos e a sensualidade da curva dos carros, era como a sensualidade das curvas do corpo de uma mulher -- compreendeu-me.

Ele e eu somos ambos membros do museu. Não pensou que eu fosse, que eu passasse tanto tempo lá. Perguntou-me de onde eu era e eu disse-lhe que era de Portugal. Qual a frequência com que eu visitava Portugal. A frequência é uma coisa relativa, talvez eu nunca tenha saído. Apenas lhe disse que ia a Portugal durante o Verão. Se quisesse fazer uma road trip por Portugal, poderia vir comigo. Terminámos a conversa porque havia afazeres -- dele e meus.

Mais tarde voltou ao meu gabinete, mas só já lá estava eu. Meteu conversa outra vez, acerca de arte. Ele gosta de Mies van der Rohe; eu também. As cadeiras Barcelona, que ele e eu adoramos. Antes tinha sido engenheiro, trabalhou na Knoll, que é a empresa que tem licença para as fabricar nos EUA. Sabe tudo sobre cadeiras. Eu até conhecia a cadeira Eames e ele achou tão estranho que eu conhecesse. Perguntou-me se eu queria ir à exposição no Museu de Belas Artes com ele. Claro que queria, até tinha intenção de o convidar, mas ele antecipou-se.

Falámos mais de arte: Rothko, claro, a capela. É impossível conhecer arte e não falar de Rothko e da capela em Houston. Ele não gosta dos quadros negros, mas eu aprendi a gostar muito, até fui ver a exposição retrospectiva de Rothko cinco vezes. Ele adora o mobiliário de George Nakashima, que eu não conhecia. Adora mobiliário Mid-Century Modern e eu também; é o meu estilo preferido. Falei-lhe de Zaha Hadid, que adoro; Frank Lloyd Wright, que eu gosto, mas ele não gosta muito. Falei-lhe de Fay Jones, um estudante de Frank Lloyd Wright que tem várias obras significativas no Arkansas -- as suas duas capelas são famosas. Ele conhecia. Por acaso, hoje, eu tinha visto mais uma vez a minha colecção de fotografias preferida: In Memory of the Late Mr. and Mrs. Comfort, de Richard Avedon (1995), a última sessão fotográfica de Avedon. Mostrei-lhe no computador, pois ainda tinha a página aberta.

Ficou surpreendido por eu gostar de Avedon, de arte, de arquitectura, de Mies, de Zaha Hadid. Mostrei-lhe imagens do Centro Cultural de Belém, disse-lhe como sou tão feliz quando lá vou, é um espaço tão bonito, nota-se que as pessoas são felizes lá. Ele explicou-me como os americanos não gostam muito de mudança, de como não gostam de edifícios muito inovadores, senti que tinha admiração pelo Centro Cultural de Belém quando lho mostrei. Falei-lhe de toda a arte que existe em Lisboa, em Portugal. Queria mostrar-lhe tudo o que me agradava. Sim, queria mostrar-lhe a calçada antes de as nossas cabeças iluminadas acabarem com ela.

Ficámos de marcar uma hora para irmos ao Museu de Belas Artes este fim-de-semana. Ele ficou feliz por ter alguém com quem conversar sobre arte; que quando falava com os amigos, todos o achavam estranho; que nunca tinha conseguido entusiasmar o seu empregado para que ele apreciasse arte. Era como se ele e os outros pertencessem a universos diferentes que não se intersectavam. Mas eu e ele habitávamos o mesmo universo. Só o tempo era curto para tudo o que queríamos conversar. Mas a conversa continuará amanhã e depois no fim-de-semana e talvez mais tarde, até que ela surja: a morte, provavelmente a dele antes da minha.

Senti a presença da morte esta tarde enquanto falava com ele. Ela é calma, serena, acompanha-se da solidão. Conversou comigo depois, gentil porque não a receio, disse-me que um dia serei eu. Um dia seremos todos: sete mil milhões de vidas; sete mil milhões de mortes. É sempre a contrapartida...

7 comentários:

  1. Desculpa a ignorância, mas em que consiste o modelo de negócio da contrapartida?

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    1. Os especuladores fornecem liquidez ao mercado imobiliário americano, dão informação ao mercado acerca das expectativas deste, e absorvem parte do risco. Há vários tipos de empréstimos imobiliários: uns mais seguros, que podem ser obtidos junto de bancos comerciais, e outros mais arriscados que os bancos não querem fazer e são feitos através de empresas especializadas em financiamento imobiliário. As hipotecas são agregadas em activos e vendidos de acordo com a rentabilidade desses activos. Os especuladores compram e vendem esses activos, para que as empresas que querem produzir esses empréstimos tenham a quem os vender e os investidores que os querem comprar tenham sempre mercado onde comprar. O especulador faz dinheiro quando consegue compreender a informação do mercado melhor do que os outros intervenientes, i.e., acha que o activo está barato e que vai apreciar, logo compra-o e tem-o no portefólio até achar que não vai apreciar mais e o vende. Se tiver percepções erradas do mercado é claro que perde dinheiro, pois compra caro e vende barato. Um bom especulador perde e ganha, mas consegue sobreviver, quer dizer que os ganhos excedem as perdas. Mas há muitos que não sobrevivem...

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    2. Obrigado... Acho que a minha confusão se deveu ao uso da expressão "contrapartida": pensei que seria equivalente a um "avalista", que é uma figura que não costumo associar a um "modelo de negócio".

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    3. A Rita referia-se ao termo inglês "counterparty", que traduziu livremente.

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  2. Desde o Início que assim tem sido.
    O Homem nasce realiza um percurso mais ou menos longo à escalada sua própria dimensão e regressa à orgem, através de um processo que nem sempre aceita do mesmo modo e que sempre lhe escapa ao entendimento.
    Gonçalo Annes Bandarra e Michel de Nostredame, contemporâneos, predisseram o fim do mundo... não posso imaginar se esses dois visionários do futuro, conseguiram quantificar o mundo... setemilmilhões... setentamilmilhões... setecentosmilmilhões?! A doce morte vai ter muito trabalhinho pela frente mas, se... quando a eutanásia deixar de ser crime, "ela" vai ter uma preciosa ajuda...

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  3. É um artigo extraordinário para quem quiser cotejá-lo com a teoria do luto, de Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004)

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