3. Tu não te atrevas a pisar-me os
óculos.
Esta frase, para sermos francos, não é assim tão famosa quanto isso,
mas tantas vezes é da obscuridade que nasce a luz. Se fôssemos amigos de
paradoxos, diríamos qualquer coisa como isto. Que é famosa por não ser famosa.
Que a sua fama é não tê-la. Que alcançou o curioso estado de famosa e não
famosa ao mesmo tempo. Que não estamos nós ainda preparados para compreender a
verdade de uma fama que não traz fama. Que tudo está em tudo, tudo é o mesmo,
tudo se equivale, regressamos à grande mãe ou ao grande pai onde todas as
coisas se perdem e se encontram, e assim por diante até ao cansaço e a uma
garganta rouca. Mas não gostamos assim tanto de paradoxos. Ou melhor, não
gostamos assim tanto de profundidades. Logo, o melhor é contar quem e porquê
disse esta frase, e explicar que relação peculiar tem ela com a fama. Depois,
logo decidem se a merece ou não. Quem sabe, perdoem-nos estarmos tão perigosamente
à beira da profundidade, não é para nos obrigar a tomar uma decisão que esta
frase, que não é assim tão famosa quanto isso, é uma frase famosa. Antes de
começarmos a contar quem e porquê, temos que admitir aqui uma mancha no nosso
discurso, que quando acima escrevemos que tantas vezes é da obscuridade que
nasce a luz não nos aproximámos simplesmente mas sim perigosamente da
profundidade, pusemos lá um pé e o outro esteve quase. Desculpem lá. Nem sempre
é fácil ficar na superfície, há demasiados buracos. E a quantidade de pernas
que temos, então. Dava para encher vários. Estas considerações em torno de
pernas e buracos não são despropositadas. Nem frívolas. Porque a frase em causa
tem exactamente a ver com um par daquelas e uma instância destes. Um vizinho
tinha um buraco no quintal e o outro não. O buraco escavara-o o vizinho que o
tinha ao longo de vários anos e com zelo. Todos os dias saltava lá para dentro
e tirava mais uma pazada de terra. Repare-se, saltava, lá está, as pernas,
habitualmente envolvidas em saltos, não vêm aqui a despropósito, e ao buraco já
fizemos referência. Não era a ganância que o movia, a expectativa de um tesouro
enterrado. Nem o faro policial, a possibilidade de encontrar em vez do tesouro
um esqueleto. Nenhuma intenção arqueológica, nenhuma vontade petrolífera, nem a
ciência nem o negócio. Era mesmo a aspiração da profundidade que o movia. Esta
aspiração poderia ter-se ficado por aquele quintal, não fora o que se segue. As
pazadas de terra acabavam no quintal do vizinho, do tal que não tinha lá
buracos. Anos e anos a fio. Pazadas atrás de pazadas. Tentou este vizinho
parlamentar com o outro. Fazê-lo compreender o incómodo. Nada. Chamou as
autoridades, mas do fundo do buraco o vizinho gritou que não se importava de
pagar uma multa. Experimentou meditação, contratou quem lhe retirasse a terra
do quintal, apresentou a conta ao vizinho, que não lhe ligou nenhuma, mas a
paciência esgota-se, quem diz que a tem infinita, mente. Quando um dia apanhou
o vizinho a sair do buraco, arrancou-lhe da cara os óculos, lançou-os ao chão,
e levantou sobre eles uma perna pronto para esmagá-los. E disse então a frase o
vizinho emergente. Querelas entre vizinhos são vulgares, nada que valha o manto
dourado da fama. Só que há uma luta milenar entre profundidade e superfície que
torna esta digna dela. Mas vocês é que sabem.
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