segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Referendo - primeiro take

O referendo sobre a permanência do RU na UE será agora profusamente debatido pelos distintos comentadores portugueses, que, tipicamente, como diria o Pessoa, conhecem o panorama político britânico como danados. Eu, que nem sequer comentador sou, e que, face aos comentadores portugueses, só tenho a vantagem de ter vivido alguns anos no país, tenho pouco a oferecer aos leitores deste blog que eles não possam encontrar nas páginas dos jornais nacionais. Talvez me deva portanto focar em pequenas estórias, evitando grandes narrativas sobre a coisa. 

Eu passei várias fases em Londres. Estive em modo de férias prolongadas, quando acabei o meu curso em Lisboa; na altura a minha vida era sobretudo passada em clubs revivalistas da britpop, repletos de mods, que entretanto – os clubs, mas também os mods - , um a um, desapareceram do centro da cidade para dar lugar a lojas que vendem café com leite a turistas e gente muito apressada; tirei cá um mestrado, numa escola que foi criada no início do século passado para ensinar as elites inglesas a gerir as suas colónias ultramarinas e que, num volte-face extraordinário, acabaria por se tornar um dos grandes centros académicos anti-colonialistas da Europa; depois fui trabalhar, sendo que, atualmente, é a primeira vez que trabalho apenas com colegas ingleses. Em todas estas fases, conheci ingleses irremediavelmente diferentes entre si, e estas diferenças desafiam qualquer tentativa de encontrar uma narrativa coerente sobre o modo como este povo se vê a si mesmo, e como vê o seu papel na Europa. Talvez esteja mesmo disposto a argumentar que estas diferenças entre os ingleses são, no contexto do referendo, mais úteis e operacionais do que as suas semelhanças. 

Uma das grandes diferenças é aquela entre Londres e o resto do país. Que país? Aí começa parte do problema. Londres é, simultaneamente, a capital do Reino Unido e de Inglaterra. Ora em Londres estão o Parlamento e o Governo do Reino Unido, mas não os de Inglaterra – que não estão em lado nenhum, porque não existe um Parlamento e um Governo ingleses. Mesmo as leis que se aplicam exclusivamente a Inglaterra são votadas no Parlamento do Reino Unido, inclusivamente por deputados eleitos pela Escócia, Gales e Irlanda do Norte. Quase se poderia dizer que Londres é a capital política de um país que sacrificou a sua existência política à da do Reino Unido. É o centro de um país descentralizado. 

 Das maiores surpresas que tive quando iniciei as minhas atuais funções foi aperceber-me da relação dos ingleses com quem trabalho com a sua capital. Tenho a sorte de ter feito muito bons amigos entre os meus colegas, e, raridade, ter sido convidado para jantar em casa deles. A grande maioria vive fora da M25 (uma espécie de CREL que delimita Londres). Vivem em pequenas vilas onde têm as suas casas de família de dois andares, com jardins muito simples de narcisos e túlipas nas traseiras, a que lhes são prestados, na íntegra, os poucos cuidados que exigem. Têm o seu pub local onde almoçam aos domingos o Sunday Roast com os pais, fazem as suas compras de frutas e vegetais da época no mercado local, e vão de carro ver o mar, quando o tempo o permite. A Londres, por opção, vêm apenas quando algo muito importante o justifica. Quando o fazem, é toda uma logística! Fazem-se com muita antecedência as reservas do restaurante a que vão desde os anos 60, ou que iam os pais desde os anos 60, mesmo que o dono tenha mudado vinte vezes e seja hoje um russo qualquer que nem tem direito de residência no Reino Unido. Consultam-se as páginas do Times para decidir que peça de teatro no West End se vai ver e fazem-se listas de livros para comprar na capital. A maioria destes meus colegas nunca teve um amigo estrangeiro, e, posso mesmo dizê-lo, muitos deles nunca tinham trabalhado com um. 

A distância de Londres é física, mas é sobretudo cultural. Lembro-me de ter uma reunião com um académico americano, de visita à cidade, e, no meio de oito colegas ingleses, o meu chefe pergunta-me a mim o que é que eu sugiro ao nosso convidado. Eu, na visão deles, sou o londrino. Londres é, e não é, não sei se já disse, a capital de Inglaterra. As preocupações de Londres não são, necessariamente, as preocupações dos ingleses – e a economia de Londres não é, pelo menos aos seus olhos, necessariamente a economia que os preocupa. As diferenças de rendimento per capita entre regiões, face a Londres, são extraordinárias. Londres é a região mais rica do Norte da Europa, e as nove regiões mais pobres do Reino Unido são também as nove regiões mais pobres do Norte da Europa. 

Boris Johnson, o presidente da Câmara de Londres, anunciou o seu apoio à saída do Reino Unido da União Europeia. Segundo as sondagens mais recentes, o peso político de Boris pode mudar a opinião de vários indecisos. Há muita gente que estranhou a jogada política de Boris. Como é que o líder da região do Reino Unido com maior ligação e dependência da Europa, a região que mais beneficia do movimento livre do capital humano europeu mais qualificado, e que exporta mais serviços financeiros suportados no livre movimento de capitais, sugere a saída da União Europeia? Certamente, perderia qualquer debate centrado nas necessidades de Londres. Precisamente. Boris não quer ganhar o debate de Londres. Quer ganhar o debate de Inglaterra.

12 comentários:

  1. És o meu londrino preferido! Adorei ler isto...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E eu acabei de ganhar um londrino preferido! :)
      Obrigada pelo texto. Fico à espera dos próximos.

      Eliminar
    2. Eu bem te dizia para falares de Londres... Já podíamos ter começado a corromper-te há muito mais tempo. Time is money, buddy!

      Eliminar
  2. Eu, que nunca vivi para lá do Canal, reconheço perfeitamente a imagem que tenho de Inglaterra e dos ingleses.

    ResponderEliminar
  3. Apreciei muito o seu artigo, que retrata muito bem vários aspectos de Londres e de Inglaterra. Que saudades eu tenho do "Sunday Roast" (cantado pelos Moody Blues em "Lazy Day", by the way).

    Quanto à livre circulação de pessoas, capitais, etc. etc., eu acho que isso é basicamente um espantalho: a Suíça e a Noruega, contumazes eurorefractários, beneficiam disso. E em relação à City de Londres, os mesmos augúrios se levantaram aquando do debate acerca da entrada ou não do Reino Unido no euro.

    Have a pint on me!

    ResponderEliminar
    Respostas

    1. Quanto à livre circulação de pessoas, capitais, etc. etc., eu acho que isso é basicamente um espantalho: a Suíça e a Noruega, contumazes eurorefractários, beneficiam disso.


      Pois beneficiam. Para tal tem de contribuir para o orçamento da UE, e tem de permitir o mesmo acesso aos cidadãos da UE. Uma vez que a razão principal para o referendo aparenta ser (do lado "leave") justamente não querer isto, não estou a ver como tal pode ser conciliado...

      Eliminar
    2. Alexandre, trata-me por tu, que somos todos jovens! E eu farei o mesmo.

      Não tenho a certeza que a City não seja afetada. Têm sido dados vário alertas dos bancos...

      Eliminar
    3. iv: a contribuição britânica para o orçamento comunitário não foi sequer alvo das negociações agora terminadas. E, se a Suíça e a Noruega para ele contribuem, decerto não será na mesma "dose" que lhes calharia se fossem membros da UE, até porque uma das coisas excluídas do Espaço Económico Europeu (UE+EFTA) é a famigerada Política Agrícola Comum, um dos principais sorvedouros do referido orçamento.

      Eliminar
  4. Esta União Europeia, em que uns são filhos outros enteados, ou em que são doados milhares de milhões de euros a um regime que, à vista de toda a gente, apoia organizações terroristas, bombardeia as suas próprias cidades e prende e mata jornalistas e opositores políticos, não serve. Ou muda ou mais vale acabar com esta palhaçada, já. Se fôr o Reino Unido a passar-lhe a guia de marcha tanto melhor. Não seria a primeira vez que este salva a Europa dos seus delírios.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tendo a concordar que, como está, a UE não faz grande sentido. O problema é que não estou a ver Portugal sobreviver à margem da UE.

      Eliminar
    2. Sobrevivemos centenas de anos sem União Europeia, os países europeus que não fazem parte da UE crescem mais do que os que a integram, mal vai que não sejamos capazes de viver sem ela. Mas o pior de tudo é, perante tantos sinais de que as coisas não estão bem, não existir em Portugal um debate organizado e consistente sobre a nossa relação com a UE. Uns a servir de tapete, outros de joelhos, outros a olhar para o lado, com mais ou menos seguidismo, infelizmente, para nossa desgraça, só nas franjas da esquerda e da direita se questiona se Portugal não tem futuro sem a burocracia de Bruxelas e Franckfurt a mandar em nós. Casamento que não é fruto de uma decisão livre e permanentemente desafiada não é uma união feliz. E acaba mal.

      Eliminar

Não são permitidos comentários anónimos.