Fui para a fila, que era comprida e pedi o costume: uma sanduíche de bacon, queijo, e ovo, e um café americano numa caneca -- para pedir que as coisas sejam servidas em pratos e canecas, diz-se "for here" no final, senão vem em copo e saco de papel, o normal de quando é "to go". A rapariga não percebeu o meu "for here", o que me incomodou um bocado. "Tenho de ser mais clara a fazer o pedido", pensei. Esperei pela comida e depois sentei-me num dos cadeirões de cabedal. No cadeirão do outro lado estava um menino, com talvez três ou quatro anos, a brincar com carrinhos. Quando a mãe, que ainda estava na fila o chamou, perguntei-lhe se desejava o meu lugar. Disse que não e mandou o menino sentar-se a uma mesa. Senti-me um bocado mal-educada, por não me ter apercebido que talvez ela quisesse aquele lugar antes de eu me sentar, mas ela ainda não tinha comprado nada e eu já estava servida, logo eu teria prioridade.
Alguns minutos depois, o senhor com quem eu me tinha cruzado a caminho do quarto de banho, sentou-se no cadeirão diagonal ao meu. Não tinha comprado nada, sentou-se apenas. Comecei a ligar os pontos: pela aparência dele era muito provável que fosse um sem-abrigo. Pensei no caso enquanto comia e bebia o meu café. Depois li algumas páginas de um livro de poemas da Safo, que comprei no outro dia. Por vezes, ao levantar os olhos, cruzava-me com os olhos do senhor. Parecia-me que queria dizer-me algo, até porque estava um bocadinho irrequieto, mexendo-se muito. Entretanto, um outro senhor sentou-se no cadeirão à minha frente a ler o jornal e a tomar o seu café, indiferente ao diálogo silencioso que eu travava com os olhos do primeiro senhor.
Na mesinha entre os cadeirões dos dois homens, ainda estavam copos de papel vazios que tinham sido deixados por outros clientes. Foi uma das primeiras coisas em que reparei quando tinha chegado ao café -- incomoda-me muito a falta de civismo e, no Starbucks, o esperado é cada um meter as suas coisas no lixo, pois não há serviço de mesa. Levantei-me, peguei no lixo alheio para o levar para o caixote, e perguntei ao senhor do casaco camuflado se queria um café e uma sanduíche. Disse-me que sim e agradeceu. Perguntei-lhe se queria alguma sandes especial, mas disse-me para eu escolher. A sua voz era quase frágil, a forma como estava vestido e falava fazia-me suspeitar que talvez fosse um veterano e sofresse de alguns problemas mentais. Naquele momento quis que ele fosse uma pessoa pequenina, que eu pudesse agarrar, meter no bolso, e levar para casa. Mas era uma pessoa a sério e eu não podia levá-lo para lado nenhum, até porque isso poderia ser perigoso para mim.
Nas grandes cidades encontram-se pessoas diferentes, o que os americanos chamam de "characters". Há dois anos, quando fui a Memphis, ia no carro com a minha amiga Elinor, que tem mais de setenta anos e é uma pessoa muito amável e empática, quando ela me chamou a atenção para uma mulher sem-abrigo que passava na rua e disse "Vês aquela sem-abrigo? Nunca lhe dês boleia, ela costuma apontar uma faca às pessoas que a ajudam. Já me apontou a faca uma vez. Sofre de esquizofrenia." Tomei nota do aviso, mas também não é meu hábito dar boleia a desconhecidos. Por vezes, quando tenho dinheiro, sou capaz de o dar a alguém que esteja num cruzamento, desde que seja de dia e eu pense que não corro riscos desnecessários.
O senhor acalmou depois de comer e tomar o seu café. A certa altura, entrou uma mulher negra no café a falar alto, com sacos de plástico cheios de roupa. Não percebi muito bem a conversa dela, mas assim que entrou, dirigiu-se ao senhor de casaco camuflado e pediu-lhe dinheiro. Julgo que eram conhecidos porque ele rapidamente tirou algum dinheiro do bolso e deu-lhe uma nota de dólar, ficando com a de cinco para ele. Ele olhou para mim com cumplicidade e eu sorri-lhe. Talvez tivesse medo que eu pensasse mal dele por ele ter tido dinheiro e ter aceite a minha oferta. Mas foi exactamente o contrário: fiquei um pouco mais descansada por ele ter algum dinheiro para mais tarde. A senhora saiu, despedido-se em voz alta dos baristas, e continuando a falar sozinha enquanto ia pela rua.
Talvez alguns de vós pensem que os EUA são uma sociedade muito cruel, que não apoia estas pessoas, mas as coisas não são tão pretas e brancas como isso. No ano passado, um sem-abrigo de 62 anos foi ajudado por um polícia e conseguiu encontrar uma conta bancária antiga onde recebia os pagamentos por incapacidade da Segurança Social. Nessa conta, tinha-se acumulado o suficiente para ele arrendar um apartamento decente e não precisar de trabalhar para viver. Muitas vezes, as pessoas acabam na rua porque não têm capacidade de pedir ajuda, talvez por terem medo, ou sofrerem de problemas mentais. Nem sempre é o estado que se recusa a ajudá-las; mas nos EUA o estado não ajuda quem não se ajuda a si próprio. Por exemplo, pessoas que desistem de emprego, ou são despedidas porque fizeram alguma coisa mal, não têm direito a benefícios.
Voltei para o meu livro e tentei concentrar-me, mas de vez em quando interrompia a leitura para conversar com amigos pelo Facebook. Fiquei lá mais meia hora, pelo menos, e levantei-me para sair. O senhor acenou-me adeus e eu acenei-lhe também. Não sei se o voltarei a ver, espero que sim. Tinha pensado em voltar ao Starbucks por volta da mesma hora este Sábado, mas uns amigos meus estarão a caminho do México, indo fazer escala no aeroporto Bush International, e pediram-me para eu os encontrar lá para tomar um café. Talvez no Sábado a seguir dê para eu ir regressar ao Starbucks: no Sábado, à mesma hora...
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