Rodrigo Mendes Pereira (RMP) é doutorado em Economia pela Cornell University. Foi meu colega e, se bem me lembro, éramos os dois melhores alunos de Macroeconomia do nosso ano. É brasileiro, vive no Brasil e, actualmente, é funcionário público federal, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com pesquisas mais recentes nas áreas de Economia do Meio Ambiente, e Economia Agrícola.
A Destreza das Dúvidas (DdD) foi entrevistá-lo.
(DdD) Rodrigo, depois de 10 anos de crescimento notável com Lula da Silva no comando do Brasil, os últimos anos têm sido péssimos para a economia brasileira. O que se passa? É a ressaca do crescimento? Tratou-se de um crescimento desequilibrado?
(RMP) A mudança na performance da economia brasileira foi realmente notável. De um crescimento médio do PIB de 4% ao ano na década dos 2000, culminando com 7,5% no ano de 2010, sofremos uma guinada forte, inicialmente de relativa estagnação entre os anos de 2011 e 2014, e finalmente uma queda livre, com o PIB caindo 3,8% em 2015, com estimativas de queda similar em 2016. Confirmadas as previsões, nossa renda per capita será, ao final de 2016, 20% menor do que era em 2010. Não há melhor definição para uma década perdida. Parte da explicação para o tombo da economia brasileira é comum à queda de performance das demais economias exportadoras de produtos primários, sobretudo as latinoamericanas: o fim do boom das commodities. Mas nenhuma outra economia apresentou uma queda tão drástica no crescimento quanto o Brasil. As exceções seriam a Rússia, envolvida em guerras e embargos comerciais, e a Venezuela bolivariana cuja economia entrou num colapso absoluto. Tudo isso leva a crer que uma parte significante do infortúnio brasileiro tem origem doméstica. Mas qual seria essa origem?
O PT inicialmente ascendeu ao poder com Lula em 2002 com um discurso moderado. E, de fato, no primeiro mandato de Lula houve uma continuação da política econômica implementada por Fernando Henrique Cardoso, baseada no que ficou conhecido como o tripé macroeconômico: câmbio flexível, rigor fiscal, metas para a inflação. Lula escolheu um ministro da fazenda comprometido com a disciplina fiscal, Antônio Palocci, e um presidente do Banco Central comprometido com as metas inflacionárias, Henrique Meireles. A administração Lula rapidamente ganhou a confiança dos mercados. O consenso hoje é que esse tripé, juntamente ao cenário externo favorável, e à expansão do crédito doméstico, criaram as condições para o vigoroso crescimento da economia no período. Mas dentro do próprio PT essa turma era vista como neoliberal, e portanto estariam travando um crescimento potencial muito maior. Com a chegada de Dilma Rouseff e do novo ministro da fazenda Guido Mantega ao governo Lula, em 2006, a visão desenvolvimentista foi progressivamente ganhando força. Até que em 2008 a economia brasileira sofreu uma forte guinada, com o abandono completo do tripé, e a implementação do que ficou conhecida como Nova Matriz Econômica. Ali estava a origem da nossa tragédia atual.
(DdD) O governo de Dilma está debaixo de uma enorme pressão devido a acusações de corrupção ou devido à crise económica?
(RMP) Ambas as coisas. A cada dia novas revelações são feitas a respeito do modus operandi do PT no poder. São chocantes. Entretanto, eu diria que a ameaça do governo Dilma sofrer impedimento só existe por causa da crise econômica, e da consequente baixa popularidade da presidente. Se o país estivesse crescendo e a população prosperando, o Petrolão seria uma mera repetição do Mensalão (o primeiro escândalo de corrupção da era PT). Naquela ocasião vários políticos, empresários, e operadores do esquema foram presos, mas Lula, com 80% de aprovação popular era literalmente intocável.
(DdD) A corrupção no Brasil é endémica?
(RMP) Não creio que brasileiros sejam naturalmente, ou geneticamente mais propensos a praticar atos de corrupção do que outros povos. O que existe é um conjunto de instituições que fazem com que o indivíduo racionalmente escolha o caminho da corrupção. No momento em que o balanço de payoffs esperados mudar, os níveis de corrupção vão baixar. E uma operação como a Lava Jato é fundamental para que a mude a percepção dos brasileiros de que esse balanço está mudando. Por exemplo, por causa da Lava Jato o Marcelo Odebrecht foi condenado a 19 anos de prisão. Não se trata de um cidadão comum, mas do CEO da Odebrecht, um verdadeiro império. O equivalente brasileiro de um Donald Trump.
Você conseguiria imaginar uma presidente da Cornell University desviando parte do orçamento da universidade? Impossível, não é? Mas o Timothy Mulholland, um norte-americano, renunciou ao cargo de reitor da Universidade de Brasília após ser acusado de improbidade administrativa. A corrupção não tem origem no sangue, mas sim nas instituições.
(DdD) São os tribunais brasileiros suficientemente imparciais para lidar com corrupção de um nível tão elevado?
(RMP) Eu não tenho dúvida de que nas instâncias inferiores, os tribunais federais são imparciais. Há uma nova geração de Juízes e Promotores bastante idealistas e focados. O mesmo não se pode dizer da suprema corte. Dos onze ministros do supremo, apenas um deles, Gilmar Mendes, não foi nomeado pelo PT. Daí a manobra do PT para transformar o Lula em ministro, e com isso transferir seu foro da justiça comum para a suprema corte, onde ele dificilmente seria condenado.
(DdD) Parte da esquerda portuguesa diz que estes processos que envolvem Lula e Dilma são políticas. Que a direita brasileira não perdoa que os governos de esquerda tenham tirado milhões de pessoas da pobreza. Esta acusação faz sentido?
(RMP) Vamos dividir os argumentos aqui. O processo de impedimento da Presidente Dilma é totalmente político. A votação é feita pelo congresso, com regras estabelecidas pela suprema corte. Não se trata de um julgamento, mas sim de uma votação. O caráter é eminentemente político. Se Dilma sofrer o impedimento, não será porque participou ou não de atos ilícitos, mas sim porque sua base de apoio no congresso está esfacelada. Uma consequência direta do esfacelamento de sua popularidade. Essa popularidade caiu por terra por causa dos erros de política econômica, a direita não tem nada a ver com isso. Fez apenas oposição legítima ao governo Dilma. Lula, por sua vez, enfrenta uma investigação, e possivelmente um julgamento. O resultado vai depender de fatos e provas. É claro que por ser um ex-presidente, e figura proeminente do PT, há implicações políticas. Mas, como eu disse, eu acredito na isenção dos tribunais brasileiros nas instâncias inferiores. Quanto a tirar milhões de famílias da pobreza, há controvérsias. Primeiramente, a condição necessária para isso foi o crescimento econômico, que só ocorreu porque o PT brincou de ser neoliberal, e manteve o tripé. No momento em que o PT passou a ser PT, e a praticar a retórica de décadas com a Nova Matriz Econômica, a economia parou de crescer. E possivelmente quando o PT entregar o governo ao seu sucessor boa parte dessas milhões de pessoas estarão de volta à pobreza.
(DdD) Como vês a ida de Lula para o governo? Sede de poder ou fuga à justiça?
(RMP) Fuga à justiça. Ouça as gravações de conversas do Lula e de figurões do PT obtidas com o grampo da Polícia Federal. Não há margem para dúvida.
(DdD) Nas manifestações aí no Brasil, é normal ver pessoas a clamar pelo regresso da ditadura militar. Como se explicam esses apelos?
(RMP) Não sabem o que estão pedindo. O mais curioso de tudo é que o PT se coloca como o grande opositor à ditadura militar, mas a política econômica de Dilma, com seu desenvolvimentismo, se assemelha muito ao que foi feito durante a ditadura, mais especificamente no Governo Geisel. Intervencionismo, escolha dos campeões nacionais (empresas que recebem crédito subsidiado do Bndes), frouxidão fiscal, controle do câmbio, manutenção dos preços administrados (gasolina, energia elétrica) artificialmente baixos, com objetivo anti-inflacionários, protecionismo comercial, com o aumento generalizado das alíquotas de importação, e por aí vai. Não coincidentemente, um dos principais conselheiros econômicos de Dilma foi ministro da fazenda da ditadura militar (Antônio Delfim Netto).
(DdD) Achas que a democracia está em perigo no Brasil?
(RMP) Não, acho que a crise será resolvida dentro do paradigma institucional vigente. Até um mês atrás eu diria que a chance de impedimento era baixíssima. Dilma não tinha sustentação no congresso para aprovar nada, mas tinha sustentação suficiente para não sofrer impedimento. O mais provável era termos um governo inerte até 2018. Mas o cenário mudou muito rapidamente, e agora vemos uma verdadeira debandada. O PMDB, maior partido do país, e principal aliado e base de apoio do PT estará formalizando sua saída do governo nos próximos dias. Hoje, o impedimento está muito mais próximo. Mas tudo dentro do que prevê a constituição.
Realisticamente, eu acho que nossa democracia estava mais a perigo antes da crise, quando o PT ainda usufruía de bastante capital político, e queria implementar uma reforma constitucional nos moldes do que ocorreu na Venezuela, com o executivo se sobrepondo aos demais poderes da república, censura da imprensa, fim do direito de propriedade como conhecemos. Era o famigerado Plano Nacional de Direitos Humanos, de inspiração bolivariana, hoje devidamente engavetado pelo Congresso Nacional.
Muito interessante.
ResponderEliminarMaterial excelente. Equilíbrio, conhecimento e serenidade. A Destreza adianta-se.
ResponderEliminar4 mandatos seguidos do mesmo partido criam tensão e rotura aquecida em qualquer país do mundo. Mas a culpa não é do PT. O sistema partidário atomizado e a ausência de alternativas consolidadas é que o permitiram. Mais do que ideologia iluminada, o Brasil precisa de estabilidade e concórdia. Tinham o pássaro na mão: a presidente Dilma, do PT, capaz de por rédea a "movimentos sociais" e um Ministro da Fazenda ortodoxo, Levy, capaz de fazer reformas. Uns à esquerda e outros à direita acharam pouco e rebentaram com essa fórmula ideal. Perdeu-se um bocado de tempo mas com tanta gente boa, séria e competente que o Brasil tem, vivi 6 anos maravilhosos em São Paulo, logo que haja acalmia, regressa em força.
Ó pá, é exactamente da minha área e nunca me falaste nele. Imperdoável...
ResponderEliminarMuito bom! A primeira resposta, sobre a (relativa) continuidade da política económica de FHC e a do primeiro mandato de Lula, é quase sempre esquecida por cá e é fundamental para perceber o sucesso do Brasil naquele período.
ResponderEliminarExcelente entrevista, óptimas explicações e que permitem perceber melhor o que aconteceu no Brasil. Há, porém, um aspecto que, parece-me, é descurado pelo entrevistado tal como o tem sido com respeito aos restantes BRICS, o QE da FED que inundou de dinheiro os países emergentes.
ResponderEliminarCom a implementação pela FED do seu QE uma enorme quantidade de agentes económicos teve que começar a andar em busca de rentabilidade e uma grande parte desse dinheiro foi canalizado para os BRICS e não só. Estes países, com raras excepções (o Ghana e principalmente o Botswana, dois exemplos num conjunto muito pequeno são excepções) optaram por usar este afluxo de dinheiro em gastos, simples gastos, ao invés de usa-lo como capital de semente para rendimentos futuros. Com o fim do QE pela Fed desaparecem os motivos pelos quais afluiu tanto dinheiro e tão rapidamente a estes países e estes voltam ao seu normal. Temos aqui má gestão por parte dos decisores políticos. Cada país teve, depois, as suas particularidades, nuns correu pior, noutros «menos pior», sendo, claro, a Venezuela e o Brasil expoentes primeiros do muito pior, ambos pelos mesmos motivos.
Qual QE qual carapuça. Esse foi um factor nocivo à economia brasileira. Levou a uma apreciação excessiva do Real que arrumou a indústria, colocou metade dos Brasileiros de férias em Orlando e a outra metade em Paris e permitiu a violenta e desestruturante depreciação que se lhe seguiu. Como dizia um empresário brasileiro, o câmbio bom é aquele que não se altera muito. A voracidade dos abutres que vivem (muito bem) da volatilidade brasileira não o tem permitido.
EliminarÉ sempre bom ouvir o outro lado:
ResponderEliminarhttp://jardimdasdelicias.blogs.sapo.pt/brasil-quo-vadis-antonio-teodoro-941112
É sempre bom ouvir os outros.
EliminarNeste caso descobrimos como o autor convive bem com atitudes ditatoriais, desde que o pequeno ditador jogue na equipa certa.
Ao autor não o incomoda minimamente que "a entrada de Lula no Governo Dilma responda à necessidade imperiosa de evitar a sua prisão preventiva, transferindo a competência da investigação para o STF" (palavras do próprio).
Não se discutem os perigos do judicialismo em abstracto, o judicialismo é perigoso porque atinge o Lula, e nessa altura todos os expedientes são válidos frente à necessidade imperiosa de o safar.
"O Brasil é um país de futuro. E sê-lo-á sempre." Stefan Zweig.
ResponderEliminar«Quando duas criaturas de esquerda são escutadas a arquitectar trafulhices ao telefone, o problema está na divulgação ilícita das escutas - e não nas trafulhices em si.»
ResponderEliminarAlberto Gonçalves, Diário de Notícias
Que tŕafulhices?
Eliminar"Beauty is in the eye of the beholder"
EliminarSe o teu nariz está pôdre tudo te cheira mal.
ResponderEliminarCheira a PSDB que tresanda.
ResponderEliminarJá agora, o tal Programa Nacional de Direitos Humanos (que penso que foi mais ou menos posto na gaveta em 2010, ainda muito antes da atual crise):
ResponderEliminarhttp://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdf/pndh3_programa_nacional_direitos_humanos_3.pdf
Atenção que eu não o li (aquilo é uma coisa gigantesca), mas se alguém o quiser ler para ver se corresponde ou não à descrição (pelo pouco que li, admito que tinha algo que poderia ser considerado, talvez não censura à imprensa em sentido literal, mas pelo menos censura à posteriori à imprensa hertziana).
Uma excelente entrevista que, na minha opinião, deixa claro o que tem andado a ser escondido desde há muito. O crescimento do Brasil começou antes de Lula.
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