16. "Estou pronto.
Vou continuar. Nasci. A gravidez
da minha mãe não foi fácil, e muitas vezes teve o meu pai que consolá-la. Não
porque houvesse algum problema de saúde, apesar da sua delicadeza. Mas porque
receava perder a figura que exibia com orgulho nas avenidas e nos jantares.
Porque receava nunca mais ter aquela cintura que convidava os cavalheiros a
pedir-lhe para dançar, que lhe enchia o caderninho onde se escrevem os nomes
dos pretendentes às valsas e mazurcas. Porque receava que entrar nesta nova
fase da sua vida significasse entrar no grupo daquelas mulheres pesadas que
vestem tons escuros para esconder as imperfeições. O meu pai apelava ao sentido
maternal e à doçura que esperava que se fossem desenvolvendo com a progressão
da gravidez, mas a barriga cada vez maior da minha mãe só tornava maiores e
mais amargas as suas lágrimas e os seus suspiros. Nasci, e os suspiros da minha
mãe eram agora de alívio. Depositara no mundo um fardo que seria agora o mundo
a suportar. E desse mundo fazia parte a ama que me amamentou e acompanhou os
meus primeiros passos e brincadeiras, os filhos da ama de que em breve eu já
não me distinguia, e o meu pai. Visitava-me ele todos os dias, apesar da
distância a que ficava a aldeia de s., mais longe da cidade de f., onde
habitava, do que da cidade de l., para onde acabou por mudar-se. A minha mãe
não o acompanhou nesta mudança, morreria se abandonasse as suas amigas, as
lojas que sempre a serviram com deferência, os pais que lhe lembravam o tempo
dos romances com que pensava estar a preparar a sua passagem para a idade
adulta, a idade dos oficiais garbosos, das tramas arrojadas e dos herdeiros
misteriosos. Isto disse a minha mãe ao meu pai, que, por esta altura, já estava
pouco interessado em argumentar com ela, em tentar convencê-la sequer a cumprir
os seus deveres de esposa. Deixou-a. Assim que cheguei à idade de ir para a
escola, fui viver para a cidade com o meu pai. Foi dolorosa a separação da ama
que foi a minha verdadeira mãe, e dos filhos dela que foram meus irmãos. Mas eu
adorava o meu pai, e a perspectiva de ir viver com ele tornou mais fácil
começar esta nova etapa da minha vida. E, sempre que podia, fazia visitas à
minha família da aldeia de s. Cresci, terminei os meus estudos da lei, que
muito me desagradaram, e preparei-me para assumir os negócios do meu pai. Este
definhara com o tempo, não era já o homem determinado e forte que construíra
uma fortuna. Dir-se-ia que vivia alheado de tudo, e nem eu era capaz de o fazer
sorrir. Passava horas sentado num cadeirão, no mais completo silêncio. Descobri
que há muito deixara de cuidar das contas, dos débitos, das obrigações para com
sócios e accionistas. Encontrei um caos de papelada nos escritórios e de
dívidas nos bancos. Fiz o que pude, mas era inexperiente, lancei-me em
investimentos que se revelaram desastrosos, contraí dívidas que seria quase
impossível pagar. O meu pai assistia impávido à derrocada do que construíra
durante uma vida inteira. E um dia, sem avisar ninguém, pôs no bolso uma
pistola, foi até à casa onde vivia a minha mãe, e matou-a com um tiro. Está
hoje na prisão de g., onde vive feliz, sorridente, falador, e é o preferido dos
carcereiros."
Terá sido ele que lhe deu um tiro; ou ela que lho pediu?
ResponderEliminar