sábado, 23 de abril de 2016

História gótica


43. Uma agulha de prata e um fio de ouro.
Dedais, tesouras, alfinetes. Prata, ouro, prata. Em caixa de ébano negro, negro, negro, e forro de veludo vermelho sangue, sangue. Como marfim, as mãos de dedos finos da Condessa de Ecsed seguram a agulha e o fio. Ao fim de séculos, os olhos dela são como os das aves de rapina, capazes de ver da distância alta dos céus a presa camuflada na erva ou entre pedras. Sentada num banquinho de um dos lados do estrado alto, a Condessa considera por onde começar a obra. Porque não precisa de ouro, as agulhas atestam isso e se for preciso percorram-se as salas do castelo recheadas de castiçais e taças do precioso metal, abram-se as gavetas dos toucadores e cairão sobre tapetes persas centenas de anéis, no tampo dos criados-mudos encontrar-se-ão dezenas de copos amarelos e pesados. A obra da Condessa não é a Grande Obra. Ou em rigor é, porque a Grande Obra transforma metais comuns em ouro e em homúnculos, busca a vida a partir do inanimado, do mais inanimado que há, do reino mineral. E transformar o metal baixo em ouro significa, é símbolo de, esta passagem, o metal baixo é o inanimado, o ouro o movimento enigmático, misterioso, incompreensível dos animais. Os animados, capazes de se mexerem a partir de dentro. A diferença está nisto. A Condessa entende que, maior do que a Grande Obra dos antigos alquimistas, é a Obra que desde sempre persegue. Porque mais inanimada do que os metais é a morte. Passar do morto ao vivo e sem milagres. Só pela força da vontade, que é outro mistério. Por isso, captura vivos, ou manda capturá-los. Retalha-os seguindo um método, um pedaço de cada vez. Assim que descobre os pedaços que prefere, aqueles cuja perda violenta provocou a maior dor, medida pelos maiores gritos, ordena que sejam levados para o estrado e aguarda que a quantidade da carne seja a necessária para os seus propósitos, ainda que demore dias, ou semanas. Enquanto espera, passeia entre as campas ao crepúsculo segurando nas mãos uma caveira escrupulosamente limpa, e medita sobre os mistérios, como fazem aqueles que vivem em castelos, que são os que querem saber se vale a pena toda a animação, ou se o melhor seria a submissão deste reino ao domínio do mineral, deixar o inanimado conquistar e vencer. Hoje é um dos dias em que tem sobre o estrado o material de que precisa. Ainda ao som dos gritos do desgraçado a quem foi arrancado o pedaço de carne mais recente, manda que o corcunda limpe o sangue que escorre para o chão, e começa o trabalho. Espeta a agulha numa coisa que parece ter pertencido a um braço, põe-se esta hipótese porque é um pedaço arredondado e comprido como costuma ser o bicípite. Este é delicado, e embora tenha sido cortado há várias semanas, está macio e a agulha penetra sem dificuldade. O corcunda todos os dias massaja com óleos àrabes os pedaços de carne que vão ser usados pela Condessa. Ela cose, e vai surgindo uma coisa nova mas tão propensa às hipóteses como foram as partes que a constituem. Se do labor da Condessa resultar um animal, ele será um perfeito desconhecido, ou um monstro imperfeito. Continua, absorta. Não verá alguém que se aproxime. Ganha forma nas suas mãos finas o que poderá vir a ser uma mão inaudita. Nós, no que respeita a metamorfoses, ficamo-nos pelo ouro.

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