terça-feira, 26 de abril de 2016

Shylock e a origem da má reputação dos credores

Na primeira epístola de S. Paulo a Timóteo (versículo 1 6: 10) pode ler-se que “o amor pelo dinheiro é a raiz de todo o mal”. Bernard Shaw e Mark Twain tinham uma visão diferente: a falta de dinheiro, essa sim, é a raiz de todo o mal. De facto, basta tentar imaginar o que seria um mundo sem graveto, carcanhol, massa, guito, cheta, pilim, vil metal, chamem-lhe o que quiserem. Mal por mal, é melhor o mundo tal como o conhecemos do que voltar ao tempo das cavernas. E como é que seria um mundo sem crédito (vem do latim e significa “credo”, “eu acredito”)? Provavelmente, voltaríamos à Idade Média. 
Se o crédito é fundamental para haver investimento, crescimento, emprego, etc., por que raio os credores gozaram sempre de tão má reputação ao longo dos séculos? Aliás, sinónimos como prestamistas, usurários, agiotas continuam a ter muitas vezes um sentido pejorativo.
Agora que o mundo anda a comemorar os 400 anos de Shakespeare – e de Cervantes, que também morreu em 1616 – vale a pena revisitar Shylock, uma das muitas personagens criadas pelo génio de Stratford que saltaram directamente das páginas para o nosso mundo e que alteraram para sempre a consciência do homem sobre si mesmo e sobre o mundo – se é que não alteraram a própria natureza humana, mas isso é outra conversa, uma conversa demasiado profunda e complicada para os meus pobres miolos.
Voltemos ao vilão de “O mercador de Veneza”. Shylock vive num gueto, onde viviam os judeus em Veneza, com movimentos restringidos, nomeadamente à noite. Os mercadores cristãos não podiam emprestar dinheiro com juros. A usura era um pecado grave e ninguém queria arriscar-se a sofrer as torturas sem fim do inferno. Em bom rigor, também era pecado para os judeus, mas, muito convenientemente, estes encontraram uma passagem no livro do Deuterónimo que supostamente lhes permitia emprestar dinheiro com juros a estranhos - aos não judeus, portanto. Inibidos de exercer a maioria das outras actividades económicas, os judeus especializaram-se nas finanças. Eram tolerados, porque eram necessários ao desenvolvimento financeiro da Europa. E não espanta que ainda hoje encontremos judeus em vários lugares-chave da alta finança – afinal de contas, especializaram-se na matéria durante séculos.
“O mercador de Veneza” dá-nos valiosas explicações ou sugestões sobre o antissemitismo, mas também sobre economia. Por que motivo era Shylock uma personagem tão cruel e implacável? Para emprestar 3 mil ducados a Bassanio, exige como fiança uma libra de carne de António - ou seja, a morte do amigo de Bassanio. Na verdade, o negócio do crédito exigia credores implacáveis e, muitas vezes, cruéis. Garantir que os mutuários pagam o que devem sempre foi o grande problema deste negócio.
Qualquer acto de generosidade ou condescendência para com um único devedor podia ser fatal para o negócio. Foi isto que Shylock percebeu e foi isto que perceberam todos os agiotas de sucesso. E é esta dureza ou, por vezes, crueldade inerente ao negócio do crédito que explica, em grande parte, a má reputação que os prestamistas sempre gozaram no Ocidente. De qualquer maneira, sem eles, o mundo seria, sem dúvida, um lugar bem pior.

4 comentários:

  1. " Qualquer acto de generosidade ou condescendência com um único devedor podia ser fatal para o negócio. Foi isto que Shylock percebeu e foi isto que perceberam todos os agiotas de sucesso." e foi isto que quem empresta aos países governados pelas esquerdas também percebeu. Queriam viver à custa dos outros países. Uns trabalhariam e produziriam riqueza e eles apenas pediriam "emprestadado". Para quem aprecia a escravatura e a exploração seria um bom regime.

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  2. Caro JCA,

    O problema dos prestamistas é que - e para usar termos com conotações morais ou religiosas - não viviam do próprio trabalho, mas sim dos frutos do trabalho dos outros. Note-se que o problema não estava no empréstimo de dinheiro (e é aqui que o exemplo do Shylock se perde um pouco), mas antes na cobrança da juros.

    No Islão, por exemplo, é estritatamente proibida a cobrança de juros, o que leva a que os empréstimos não sejam feitos de forma directa mas antes com recurso a a múltiplas operações de compra. É interessante que, por motivos similares, os seguros não-mutualistas (i.e. com lucro) são igualmente proibidos.

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    1. Caro Carlos,

      não questiono que existiram, existem e existirão credores que, aproveitando-se da necessidade (e habitualmente tb da ignorância) de quem precisa de dinheiro, impõem condições que logo à partida um observador independente percebe que o devedor dificilmente conseguirá cumprir. Basta olhar para coisas como o Barclaycard, impingido a torto e a direito em centros comerciais por esse país fora.

      Mas dito isto, sem juros porque raio é que eu ou você ou vamos emprestar o nosso dinheiro, arriscando-nos a ficar sem ele dado que nem todos os devedores pagam (e alguns com razões válidas para isso)?

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  3. Mais uma revisão com muito interesse.

    As observações religiosas sobre o sistema financeiro estiveram sempre erradas, desde o princípio, tendo acertado, por mero acaso de coincidência quando, na antiguidade, os reis perdoavam e faziam perdoar periodicamente certas dívidas.

    Mais tarde, no tempo dos romanos, os procedimentos eram mais sofisticados, porque havia julgamentos, e um dos seus advogados, certo grego que iria a ser confundido com Epicuro, ficou famoso, porque irou a multidão defendendo posições contraditórias em julgamentos diferentes, realizados com um intervalo de poucos dias.

    Na actualidade um caminho curto para este tipo de revisão pode ser o sugerido por Robert J. Schiller em "Ética das Finanças / Finance and the Good Society" (2011).

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