66. Monsieur Pécuvard nem sempre fora assim tão redondo e nem sempre andara de terra em terra arrastando uma mala quase do seu tamanho.
Ele próprio poderia contar como chegara ao seu presente estado, mas não era preciso muito tempo para que quem com ele conversasse se desse conta de que seria extremamente insensato dar-lhe uma oportunidade para começar a falar. Bastava conhecê-lo uma vez, bastavam os primeiros minutos desse conhecimento, para que o mais néscio compreendesse que, uma vez aberta a torneira, seria muito difícil fechá-la, não só por causa da pressão com que as frases sucessivas saíam da boca de Pécuvard, mas também, para sermos fiéis à metáfora, por causa da inundação de palavras em que quase nos afogávamos. Era como se estivéssemos num aquário a princípio vazio e sentíssemos a água enchê-lo cada vez mais depressa e nada pudéssemos fazer. E, chegando a água ao nível das nossas cabeças, não adiantava fechar a boca e o nariz. Ela entrava, bloqueava a garganta, inundava os pulmões, até que a nossa respiração parava e a euforia final que antecede a síncope nos relaxava o corpo e libertava a alma. Nesse momento, estaríamos inertes e prontos a partir para um novo mundo, de preferência surdos. Quem já tivesse falado uma vez com Pécuvard, punha-se em fuga sempre que lhe parecia ver um fato aos quadrados a virar uma esquina. O vislumbre de uma biqueira quadrada era suficiente para que as costas se voltassem e os percursos se inflectissem. Há notícia até de uma ocasião em que uma avenida inteira ficou deserta em menos de dez segundos só porque correu o boato de que se aproximava Monsieur Pécuvard, anunciado pela vozinha aguda que todos conheciam tão bem e que todos temiam mais do que o jejum da sexta-feira santa. Mas fora falso o alarme, e a vozinha aguda pertencia afinal a uma jovem vendedora de violetas e fósforos que assim treinava para entrar no coro do bairro onde queria ser soprano. Há histórias de almas caridosas, de senhoras sensíveis às crueldades dos homens, que pretenderam mudar aquilo que percebiam como uma injustiça, que se tratasse qual leproso um concidadão saudável. Aproximavam-se, pois, de Pécuvard com os seus melhores sorrisos e as suas mais louváveis intenções. E davam-se demasiado tarde conta do seu erro. De dois erros, para sermos precisos. O primeiro fora julgar com demasiada severidade quem fugia de Pécuvard, o segundo, julgar Pécuvard, de quem todos fugiam, com demasiada indulgência. Causava-lhes a situação um tal conflito interno e dilacerante, que não chegava para recuperar dos danos causados um ano inteiro passado nas termas em regime de pensão completa. O conflito, como se disse interno e dilacerante, das senhoras, consistia nisto. Ou se davam por vencidas perante a opinião pública, e teriam que pagar o preço da hilaridade dos seus pares. Ou se mantinham firmes e estóicas, à custa da satisfação consigo próprias que decorre de quem agracia um pobre com as suas esmolas. Seriam precisas décadas de caridade para que se desvanecesse o egoísmo com que emergiam desta experiência traumática. Do pânico em torno da sua pessoa redonda mantinha-se Monsieur Pécuvard inteiramente ignorante, conservando assim a sua bonomia e verbosidade. O que vem provar que a que vale a pena ser vivida é a vida não examinada.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não são permitidos comentários anónimos.