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domingo, 22 de maio de 2016
História gótica
69. Era tal a desordem que reinava, a desordem, como se sabe, reina, e também a confusão ou a harmonia, afinal são muitos os estados que reinam, no interior da mala que o homenzinho redondo abriu, e que ocupou todo o balcão da farmácia, que Dragomir, ainda mal refeito do anterior assalto à sua tranquilidade, se sentiu zonzo quase até ao desmaio. Que alguém pudesse apresentar-se como vendedor, e vendedor de objectos utilíssimos e futuríssimos, sem que se conseguisse perceber quantos e quais eram esses objectos, constituía para o farmacêutico algo de inexplicável. E como, ao abrir a mala, Pécuvard fizera cair ao chão a pilha de caixas de pastilhas com sabor a violetas que Dragomir tentava em vão vender às aldeãs desde que chegara, este sentia no peito confusão e desordem quase iguais àquelas que, como se disse, reinavam no enorme implemento de transporte de objectos pequenos do homenzinho redondo. Pécuvard não parecia preocupado com o destino do conteúdo da mala, talvez irrevogavelmente destruído. Pelo menos, não tinha desaparecido da sua boca o sorriso e do seu bigode a compostura. Pelo que não é descabido presumir que a desordem em causa fosse já bem conhecida de Pécuvard, familiar até, e não resultado de um infeliz acidente. A mala continha uma profusão de molas e manivelas, de tal modo misturadas que mais parecia ser o homenzinho redondo vendedor de peças avulsas do que dos objectos completos e funcionais que prometera. Mas como até os desarrumados têm a sua ordem, Pécuvard começou a tirar da mala essas molas, manivelas, porcas, parafusos, pedaços de metal e pedaços de madeira e, com tanta rapidez quanto aquela com que jorravam dos seus lábios enxurradas de palavras, montou máquinas enigmáticas e tentadoras. Sim, Pécuvard, aventemos, era um vendedor de sucesso menos pelo que dizia do que pela prestidigitação que realizava e pela atracção que a humanidade sempre teve pelas coisas mecânicas. A avalanche de palavras era, percebia-se agora, uma armadilha para conduzir o prospectivo cliente a um estado tal de irritação que era com surpresa que constatava que os conteúdos da mala eram supremamente interessantes. E o contraste entre a irritação e o interesse causava aquela grande experiência de imprevisibilidade que dá à humanidade extrema satisfação. Eram, então, duas as fontes de prazer da estratégia vencedora de Pécuvard. Era inesperada a curiosidade seguindo-se à antipatia, e eram irresistíveis as máquinas. Quem conhece a humanidade, e Pécuvard conhecia-a bem, sabe atraí-la, tê-la, como, mais uma vez, se diz, na mão. Por mais que a ilustração da espécie avance, nunca ela perde o fascínio por aquilo que não compreende e que logo considera da ordem do feitiço. Nunca ela perde a capacidade de ficar com o proverbial queixo caído no proverbial chão, de ficar com a boca proverbial proverbialmente aberta. E era por saber tudo isto que Pécuvard não receava que fosse descoberta a natureza do seu verdadeiro negócio.
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