72. E se pudessem dar um passo atrás e olhar para as suas
próprias deambulações de sala em sala, de corredor em corredor, Groesken,
Valodu e Ada veriam que o labirinto tinha a forma de um cérebro dentro de uma
cabeça, ou de
uma mente dentro de um cérebro, ou de um espírito dentro de um
corpo, ou de uma alma dentro de uma prisão, ou de um marinheiro dentro de um
navio, e que quando pensavam andar de sala em sala e de corredor em corredor na
verdade circulavam de lóbulo em lóbulo, deste córtex para aquele, em afluxos de
sangue, o sangue líquido que dessedenta fibras e neurónios, o sangue qualquer
outra coisa que encharca os pensamentos, estes também qualquer outra coisa, nem
líquidos, nem sólidos, nem gasosos mas sem dúvida sangrentos, o sangue figurado
mas espesso que satura espíritos, almas e marinheiros, que aos espíritos faz
aparecer infelizes no fundo dos lagos, que às almas trava na ascensão ao
paraíso, que o marinheiro limpa da lâmina da faca que enterrou no bucho de um
bêbedo incapaz de acreditar nas suas aventuras. Ainda outro passo atrás, mais
atrás, e veriam que o cérebro, o espírito, a alma, o marinheiro, aquilo de que
estavam dentro era mais terrível do que alguma vez poderia ser descrito, e que
mesmo pensamentos sangrentos, os mais sangrentos, teriam dificuldade em
imaginar o que os continha para além do cérebro, do espírito, da alma, do
marinheiro. É por isso que nada será dito aqui acerca disto a não ser que
existe, é terrível, e contém outros terrores. É sempre assim onde há limites
porque o limite não é aquilo que limita ou não se distinguiria do que limita e
sem distinção não saberíamos nunca se alguma coisa acabou já, nem sequer se
continua. E dos limites não sabemos nada porque nunca lá chegamos já que o que
existe é demasiado extenso e levaria demasiado tempo percorrê-lo mesmo nos
milhares ou milhões de anos que uma espécie pode durar. Mesmo as nossas
hipóteses não fariam justiça ao limite, inventá-lo-iam com as qualidades do que
sabemos, e dos limites não sabemos nada. Nas hipóteses dos nevróticos, o limite
é uma linha, ou é um precipício, ou é uma conjura de monstros. Ou uma esfera
transparente, ou uma cúpula azul. Os nevróticos muito perturbados são os que
não se contentam com hipóteses silenciosas e indiferentes, e assim o limite é
um homem muito grande, ou muitos homens muito grandes, ou uma ideia. Os sãos
não se incomodam muito com hipóteses porque percebem que os limites de que as
nossas hipóteses falam não são mais do que superlativos daquilo que limitam, e
não há diferença entre o limite e o que o limite limita, só há quantidades
diferentes de coisas limitadas. E quando se tenta dizer que uma diferença de
quantidade a certo ponto se transforma numa diferença de qualidade, e que o
superlativo do limitado pode ser o limite, choca-se com o problema do infinito,
que é a negação do limite e a continuidade constante daquilo que o limite
limitaria. Sendo ilimitado aquele como é ilimitado isto. Nada teria fim. Como
não tem fim o susto com que receberam Ada, Groesken e Valodu a notícia de que
estavam condenados à repetição infinita, se é que o infinito pode conter em
si repetições, processos que começam e acabam, começam e acabam, como
saberíamos nós se alguma coisa começa e acaba sem invocar o limite e a sua
queda na ausência.
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