sábado, 7 de maio de 2016

História gótica


58. Há outro? Mundo? O mundo não é tudo? Pode haver outro? Outros? Se puder, há?
Se houver, será o mesmo, serão os mesmos, replicando-se? Ou serão diferentes, será cada um irrepetível? Ou haverá aqueles que repetem outros e aqueles que não repetem nenhum? Se houver repetição, qual deles é o original e qual a cópia? Fará alguma diferença ser o original ou ser a cópia? Será a cópia perfeita ou perde qualquer coisa? Virá o original a ser melhorado pela cópia? Serão os mundos como elos numa cadeia? Ou nada terão a ver uns com os outros? Como poderão estar ligados mundos diferentes, irrepetíveis? Como, não sendo cópias de originais? Que outra ligação poderá haver? Como comunicarão mundos exóticos, como passaremos de um para outro, poderemos passar? Como podemos falar de mundos sem termos passado para outro? Haverá quem tenha passado? E, tendo passado, será diferente num mundo diferente? Como saberá de si se for? Como saberá de dois mundos ao mesmo tempo se forem diferentes os mundos e for diferente também quem passa entre eles? Outro significa quantidade ou qualidade? Há cinquenta mundos ou há mundos líquidos, gasosos, sólidos, verdes, furiosos? Seremos líquidos num mundo líquido? Seremos líquidos num mundo líquido e verdes num mundo verde? Mudaremos se for possível passar de mundo em mundo e se de facto passarmos? Poderemos chamar passar de mundo em mundo à transformação que cada mundo diferente exige de nós? Mantém-se alguma coisa idêntica para que possamos dizer que estávamos neste mundo e passámos para o outro? Se de nós alguma coisa persistir nessas passagens, quem somos? De onde somos? Do mundo de onde viemos ou do mundo para onde vamos? Se passamos e somos os mesmos, não será o mundo só um? Afinal? Havendo um mundo de braços, abarcará os nossos braços ainda que e ao mesmo tempo que os nossos braços façam parte dos nossos corpos neste? E um mundo de olhos? Se os nossos braços pertencerem a dois mundos ao mesmo tempo, tocarão ao mesmo tempo coisas diferentes em mundos diferentes? O meu braço que neste mundo se estica para apanhar uma maçã numa árvore sente ao esticar-se o que sente no outro mundo onde nada em água fresca? É cada sensação uma coisa dupla, deste e daquele mundo? Se os nossos olhos pertencerem a mundos diferentes ao mesmo tempo, quantos mundos vemos? E se, sendo diferentes os mundos, não houver ao mesmo tempo tal como não há no mesmo espaço? Se cada mundo tiver um tempo diferente, que sentido poderá fazer dizer que o que se passa num mundo se passa ao mesmo tempo que outra coisa se passa noutro mundo? Como poderá haver passagem sem sincronia? Como posso descer de um comboio para uma plataforma se não estiverem comboio e plataforma ao mesmo tempo e no mesmo espaço? E se passar de mundo para mundo exige um tempo e um espaço comuns, não voltará a ser necessário perguntar se haverá afinal muitos mundos ou um só? Se pensarmos que cada mundo é um planeta e que passar de mundo em mundo é viajar de planeta em planeta, não teremos que dizer que o mundo, o mesmo mundo, contém muitos mundos, os planetas, e que é um só? Ou fará sentido dizer que há mundos no mundo? Falar de mundos no plural é falar dos mundos que há no mundo ou de mundos que existem para lá deste e por sua vez contêm mundos, os seus mundos? Seremos capazes de falar de outros mundos quando tudo o que sabemos dizer é deste?

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