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segunda-feira, 9 de maio de 2016
História gótica
59. "Miúdo!", chamou Gavril.
Ficava sempre angustiado quando a criança desaparecia. Tinha tentado dominar-lhe a curiosidade pelo que existia fora da cozinha, mas o medo dos fantasmas e ogres das histórias que lhe contava não era suficiente. Talvez a criança não acreditasse em monstros. E Gavril pensava como seria bom se o miúdo não acreditasse em monstros, já que havia tantos tão perto. Crescer sem medo num sítio tão medonho seria um prodígio. Um prodígio tão grande como a amizade entre a criança e o cão. Voltou a chamar, "miúdo!". Gavril lembrava-se tão nitidamente do que acontecera e dera origem à criança, voltava a viver tão intensamente aqueles eventos, que não era capaz de olhar para ela sem estremecer. E espantava-se por não sentir por ela repugnância e por não ter feito o que lhe tinham pedido quando ela nascera, que a destruísse. Era tão forte o impulso de protegê-la, que o timorato Gavril arriscara desobedecer aos seus senhores. E não compreendia porquê, já antes vira recém-nascidos sem sentir por eles o que quer que fosse. Tinha tido sobrinhos adoráveis como querubins rechonchudos, sem que lhe interessassem. Podia ser por causa das circunstâncias do nascimento, por causa do que sabia do destino dos pais e de todos os que eram trazidos para o castelo. Talvez fosse por outra razão, e ele sabia qual era mas não se atrevia a formulá-la sequer em pensamento. Sentiu um puxão nas calças. "Apareceste, malandreco!" A criança sorriu. Gavril era engraçado quando fingia estar a dar-lhe um raspanete, pensou. Via-se que fazia muita força para não sorrir, e abanava o nariz de um lado para o outro como se tivesse cócegas. Até Nica e Matriona sorriam e tapavam a cara com os aventais para que o sorriso não se transformasse numa gargalhada. Ficavam tão alegres que quase se esqueciam do sítio onde trabalhavam, mas durava pouco a alegria e o esquecimento, e assim que voltavam ao normal, olhavam para cima inspeccionando os tectos. Atanase, o macaco de Anghelescu, costumava espiá-los pendurado nas vigas, e até agora tinham tido sorte. Mas a sorte acaba, e nunca se sabe quando. Até porque o macaco era manhoso, avançava sem ruído de viga em viga e quase matava as mulheres de susto quando de repente soltava um dos seus gritos agudos e arranhados. O cheiro a trapo molhado é que o denunciava, e Atanase cheirava cada vez mais a trapo molhado. Se não fosse mexer-se, dir-se-ia que era um animal empalhado por algum coleccionador de tempos coloniais e atirado ao fim de décadas para uma cave húmida por herdeiros impacientes com excentricidades e com as culpas dos seus antepassados. Uma coisa velha, suja, puída e bafienta. Mas mexia-se, via tudo, e, pensavam na cozinha, contava tudo o que via ao seu dono. Não era bem assim. Atanase escolhia cuidadosamente o que contar a Anghelescu, também com o dono era manhoso, e seria desleal se a ocasião o exigisse. Nisso, não se parecia com Cosmin. Mas até aquele latagão simplório tinha os seus segredos, rosnava Atanase para si próprio. Sim, ele sabia da existência da criança. Sabia até quem ela era, como tinha ido parar àquela cozinha, que era protegida por aquela gente engordurada e exausta que servia o seu senhor. Estivera mesmo uma vez frente a frente com ela. E nesse momento, o macaco experimentou uma coisa que não experimentava havia muito tempo, porque o que vira já na sua vida ao serviço de Anghelescu tinha-o endurecido até à imperturbabilidade. Experimentara surpresa, uma completa surpresa. Nos olhos da criança não viu o que enchia todos os olhos de quem vivia servindo aqueles senhores. Não viu medo.
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