domingo, 19 de junho de 2016

Antibiótico para o Brexit



“As notícias sobre a minha saída parecem-me manifestamente exageradas”. O comentário de Mark Twain quanto a notícias que o davam como cadáver, antes de o ser, aplicam-se ao chamado Brexit.
De um prisma jurídico, os Tratados da UE não são prolixos quanto ao abandono de um Estado-Membro. O art. 50.º do Tratado da União Europeia (TUE), com a redacção que lhe foi dada pelo Tratado de Lisboa de 2007, prevê que o Estado notifique o Conselho Europeu dessa intenção, abrindo-se um processo negocial com vista a tal saída, tendo por base as orientações dessa instituição comunitária. O acordo é celebrado, em nome da União, pelo Conselho, após aprovação do Parlamento Europeu. Existe ainda uma faculdade – que não tem sido apontada – de, não havendo acordo, a prorrogação dos efeitos do abandono da “família europeia” durar dois anos, os quais podem ainda ser prorrogado por acordo entre a UE e o Estado. Donde, mesmo que os britânicos votem no sentido de regressarem ao espaço da sua grande ilha, existe margem jurídica para ir “empurrando com a barriga” os efeitos da saída enquanto se convoca um novo referendo já com a visão concreta das consequências de não pertencer à UE.
Se assim é em termos jurídicos, politicamente inexiste margem de manobra. Cameron ou qualquer outro Primeiro-Ministro praticariam um harakiri se não respeitassem a vontade popular e fizessem como na Irlanda, em que o referendo ao Tratado de Lisboa foi repetido até se atingir o resultado que “democraticamente” interessava.
Os fundamentos da União são, para além do respeito pelos direitos fundamentais, do cumprimento dos critérios de convergência, o compromisso pleno com a democracia. Assim se lê nos Tratados e na Carta de Direitos Fundamentais. Mas a democracia só é boa quando serve os interesses da classe dirigente num dado espaço e tempo históricos. Os britânicos não deviam estar a ser sujeitos à enorme pressão – que aumentará para tons de dramatismo nos próximos dias – da fuga de capitais, da ruína económica, da perda de postos de trabalho. É exacto que as consequências económico-financeiras são imprevisíveis, mas o Reino Unido sempre manteve um pé na Europa e outro nos EUA. Sempre foi o “cavalo de Troia”, na expressão do general De Gaulle, que vetou, enquanto Chefe de Estado, a entrada dos britânicos. Para além das relações privilegiadas com os EUA, estes têm a Commonwealth e uma indústria de ponta e diversificada. Por dificuldades que certamente terão, they shall overcome.
E a UE livra-se de um Estado-Membro que já não participava em muitas das suas políticas, que negociou um estatuto vergonhoso para os demais Estados no consulado de Cameron, que é conhecido pelo “cheque britânico” dos tempos de Thatcher. A ideia com que se fica é que o Reino Unido sempre usou a UE quando lhe convinha, não fora o pragmatismo britânico uma das marcas d’água deste povo. Todos os demais o fazem, mas nisto o Estado de Isabel II é o verdadeiro boss.
Se a democracia é, no essencial, o respeito pela vontade soberana do povo, é deixá-los votar e decidir o seu futuro colectivo. Não tratem os britânicos como débeis mentais, pois eles têm-se safado muito bem e continuam a passar enormes rasteiras ao eixo franco-alemão. Suspeito mesmo que em Paris ou Berlim haja um ambiente de mixed feelings: preocupação pelas consequências económicas para ambas as economias nas trocas comerciais com o Reino Unido, mas também a ideia de que, agora, sem os pain in the ass dos britânicos, o eixo sairá fortalecido. Os demais Estados não estão em posição de falar grosso ou de exigir uma Europa à la carte como têm conseguido os britânicos.
A UE tem de se habituar a conviver com a democracia que tanto apregoa para os outros. E o Reino Unido pode sempre regressar, qual filho pródigo, aos braços da Europa continental, nos termos do art. 49.º do TUE, embora tal não seja crível nos próximos anos.
Não vou, pois, cometer a insensatez de “aconselhar” qualquer sentido de voto, como se um português ou qualquer outra das demais 26 nacionalidades influísse na escolha do cidadão comum. Já é particularmente lamentável a pressão psicológica de empresas como a Rolls Royce ou a “lei da rolha” que o executivo britânico decretou a todos quantos trabalhem para o Estado. Um país que, desde 1215, com a Magna Charta Libertatum, tem dado lições de democracia ao mundo e de libertação do despotismo de um monarca, reduzindo-o a um simpático símbolo, não honra as suas lídimas tradições.
Já sabemos que “é a economia, estúpido!”, mas podiam ser menos descarados. E voltamos ao pragmatismo britânico…
Se o voto é a fala do povo, então este que fale e diga o que pretende para o seu futuro, com a maior liberdade possível. Nós, os demais europeus, cá estaremos para dizer goodbye ou para, de futuro – espero –, sermos capazes de mostrar aos cidadãos o que é, afinal, a UE e que reais vantagens existem na sua manutenção. O Brexit é um sintoma da profunda crise de confiança que abala a União. E pode não ficar pelo Reino de Sua Majestade.

3 comentários:

  1. Caro André Lamas Leite:
    A UE vive numa tensão permanente entre dois pólos, que a hão-de marcar por muito tempo, provavelmente enquanto existir, faltando saber se resistirá muito tempo a esta tensão:
    - a necessidade de ser um grande espaço económico que tenha voz num mundo dominado pela globalização mais generalizada de que há memória.
    - a necessidade de responder às pulsões nacionalistas dos povos que a compõem, tantas vezes marcadas por antagonismos agudos de todo o tipo.
    O que estranho no mainstream luso é a brandura ou tentativa de esquecimento da denúncia da reprovável decisão de Cameron de convocar o referendo pelas razões que o fez: impor-se no seu partido como líder.
    Por aqui me fico, antes que faça mais figura de parvo com os meus comentários, despropositados na sua oportunidade contextual e nos seus termos argumentativos.

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    1. Nunca são inoportunos! Tem toda a razão no que argumenta!
      Abraço!

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