“As notícias
sobre a minha saída parecem-me manifestamente exageradas”. O comentário de Mark
Twain quanto a notícias que o davam como cadáver, antes de o ser, aplicam-se ao
chamado Brexit.
De um prisma
jurídico, os Tratados da UE não são prolixos quanto ao abandono de um
Estado-Membro. O art. 50.º do Tratado da União Europeia (TUE), com a redacção
que lhe foi dada pelo Tratado de Lisboa de 2007, prevê que o Estado notifique o
Conselho Europeu dessa intenção, abrindo-se um processo negocial com vista a
tal saída, tendo por base as orientações dessa instituição comunitária. O
acordo é celebrado, em nome da União, pelo Conselho, após aprovação do
Parlamento Europeu. Existe ainda uma faculdade – que não tem sido apontada –
de, não havendo acordo, a prorrogação dos efeitos do abandono da “família
europeia” durar dois anos, os quais podem ainda ser prorrogado por acordo entre
a UE e o Estado. Donde, mesmo que os britânicos votem no sentido de regressarem
ao espaço da sua grande ilha, existe margem jurídica para ir “empurrando com a
barriga” os efeitos da saída enquanto se convoca um novo referendo já com a
visão concreta das consequências de não pertencer à UE.
Se assim é em
termos jurídicos, politicamente inexiste margem de manobra. Cameron ou qualquer
outro Primeiro-Ministro praticariam um harakiri
se não respeitassem a vontade popular e fizessem como na Irlanda, em que o
referendo ao Tratado de Lisboa foi repetido até se atingir o resultado que “democraticamente”
interessava.
Os fundamentos
da União são, para além do respeito pelos direitos fundamentais, do cumprimento
dos critérios de convergência, o compromisso pleno com a democracia. Assim se
lê nos Tratados e na Carta de Direitos Fundamentais. Mas a democracia só é boa
quando serve os interesses da classe dirigente num dado espaço e tempo
históricos. Os britânicos não deviam estar a ser sujeitos à enorme pressão –
que aumentará para tons de dramatismo nos próximos dias – da fuga de capitais,
da ruína económica, da perda de postos de trabalho. É exacto que as
consequências económico-financeiras são imprevisíveis, mas o Reino Unido sempre
manteve um pé na Europa e outro nos EUA. Sempre foi o “cavalo de Troia”, na
expressão do general De Gaulle, que vetou, enquanto Chefe de Estado, a entrada
dos britânicos. Para além das relações privilegiadas com os EUA, estes têm a Commonwealth e uma indústria de ponta e
diversificada. Por dificuldades que certamente terão, they shall overcome.
E a UE livra-se
de um Estado-Membro que já não participava em muitas das suas políticas, que
negociou um estatuto vergonhoso para os demais Estados no consulado de Cameron,
que é conhecido pelo “cheque britânico” dos tempos de Thatcher. A ideia com que
se fica é que o Reino Unido sempre usou a UE quando lhe convinha, não fora o
pragmatismo britânico uma das marcas d’água deste povo. Todos os demais o
fazem, mas nisto o Estado de Isabel II é o verdadeiro boss.
Se a democracia
é, no essencial, o respeito pela vontade soberana do povo, é deixá-los votar e
decidir o seu futuro colectivo. Não tratem os britânicos como débeis mentais,
pois eles têm-se safado muito bem e continuam a passar enormes rasteiras ao
eixo franco-alemão. Suspeito mesmo que em Paris ou Berlim haja um ambiente de mixed feelings: preocupação pelas
consequências económicas para ambas as economias nas trocas comerciais com o
Reino Unido, mas também a ideia de que, agora, sem os pain in the ass dos britânicos, o eixo sairá fortalecido. Os demais
Estados não estão em posição de falar grosso ou de exigir uma Europa à la carte como têm conseguido os
britânicos.
A UE tem de se
habituar a conviver com a democracia que tanto apregoa para os outros. E o
Reino Unido pode sempre regressar, qual filho pródigo, aos braços da Europa
continental, nos termos do art. 49.º do TUE, embora tal não seja crível nos
próximos anos.
Não vou, pois,
cometer a insensatez de “aconselhar” qualquer sentido de voto, como se um português
ou qualquer outra das demais 26 nacionalidades influísse na escolha do cidadão
comum. Já é particularmente lamentável a pressão psicológica de empresas como a
Rolls Royce ou a “lei da rolha” que o
executivo britânico decretou a todos quantos trabalhem para o Estado. Um país
que, desde 1215, com a Magna Charta
Libertatum, tem dado lições de democracia ao mundo e de libertação do despotismo
de um monarca, reduzindo-o a um simpático símbolo, não honra as suas lídimas
tradições.
Já sabemos que
“é a economia, estúpido!”, mas podiam ser menos descarados. E voltamos ao
pragmatismo britânico…
Se o voto é a
fala do povo, então este que fale e diga o que pretende para o seu futuro, com
a maior liberdade possível. Nós, os demais europeus, cá estaremos para dizer goodbye ou para, de futuro – espero –, sermos
capazes de mostrar aos cidadãos o que é, afinal, a UE e que reais vantagens
existem na sua manutenção. O Brexit é
um sintoma da profunda crise de confiança que abala a União. E pode não ficar
pelo Reino de Sua Majestade.
Bem esclarecedor.
ResponderEliminarCaro André Lamas Leite:
ResponderEliminarA UE vive numa tensão permanente entre dois pólos, que a hão-de marcar por muito tempo, provavelmente enquanto existir, faltando saber se resistirá muito tempo a esta tensão:
- a necessidade de ser um grande espaço económico que tenha voz num mundo dominado pela globalização mais generalizada de que há memória.
- a necessidade de responder às pulsões nacionalistas dos povos que a compõem, tantas vezes marcadas por antagonismos agudos de todo o tipo.
O que estranho no mainstream luso é a brandura ou tentativa de esquecimento da denúncia da reprovável decisão de Cameron de convocar o referendo pelas razões que o fez: impor-se no seu partido como líder.
Por aqui me fico, antes que faça mais figura de parvo com os meus comentários, despropositados na sua oportunidade contextual e nos seus termos argumentativos.
Nunca são inoportunos! Tem toda a razão no que argumenta!
EliminarAbraço!