segunda-feira, 13 de junho de 2016

EUA: “Estados Umanos da América”



“Herrar é umano” – para além de “in God we trust”, esta poderia bem ser a divisa da superpotência que domina o globo. Fá-lo não somente a nível económico-financeiro, mas também militar, social e cultural. Não se veja neste escrito um qualquer anti-americanismo primário, mas uma recusa de um acrítico “pensamento único”.
Os Estados novos têm problemas específicos, mas a juventude do país em causa já não é desculpa para construções inadmissíveis para uma boa parte do mundo. Refiro-me, especificamente, ao modo como aquele país lida com as questões do sistema penal. Sobretudo desde a era Reagan e a “war on drugs”, o Direito Criminal daqueles Estados vem-se caracterizando por um “punitive turn”, por uma concepção de justiça no essencial retributiva, pela manutenção da pena de morte em vários deles e por legislação draconiana em vários domínios. A título de ilustração: o país da Liberdade é também aquele que admite que, p. ex., um seu tribunal condene o arguido – com o seu consentimento – a sofrer a pena, pelo crime de violência doméstica, de a ofendida lhe cuspir na cara em solene audiência de julgamento (“shame sanctions”). Ou de os ofensores por crimes rodoviários serem obrigados a conduzir com autocolantes que os identificam como delinquentes, para já não falar na legislação em vários pontos medieva,  em matéria de crimes sexuais, como as chamadas “leis de Megan”, em que os condenados que já cumpriram pena de prisão por tais delitos podem ser monitorizados, por todos, a qualquer instante através de um simples “click” na internet. Do mesmo passo, para quem reincidir, adaptando uma regra do basebol (“three strikes and you’re out”), à terceira condenação – que nem tem de ser por um delito grave (“felony”), podendo ser por uma “misdemeanor” (algo similar, em Portugal, a alguns delitos pouco graves ou a contra-ordenações) –, o mínimo punitivo é de 25 anos e, normalmente, é aplicada prisão perpétua.
É nesse mesmo Estado que se morre por não existirem cuidados de saúde universais. É também aí que os desperdícios alimentares são maiores e onde uma lei do uso e porte de arma, que não saiu do “far west”, vem trazendo para as notícias dramas como o mais recente, na cidade de Orlando. Este último, ao que se sabe, terá motivações terroristas, ligadas ao Daesh, mas indicia também um “crime de ódio”, figura muito estudada pela doutrina norte-americana. Aconteceu em Orlando, como podia ter sucedido em qualquer outro lugar. Tais actos merecem toda a nossa repulsa e o empenho em julgar os responsáveis por tais crimes atrozes, violadores do fundamento da personalidade humana: matar porque alguém tem uma diversa orientação sexual é atentar contra o mais lídimo de cada ser, é dizer a alguém que é “impuro” por ter gostos diversos da maioria estatística.
Certo é que Obama tentou fechar Guantánamo, alterar a legislação em matéria de armas e lançar o “Obamacare”. Em muitos destes pontos, uma maioria ultraconservadora republicana no Senado bloqueou tais iniciativas. Acredito que, para vários deles, ter um Presidente negro continua a ser um sapo que custa engolir. As marcas da Guerra Civil parecem ainda não erodidas pela História, em especial nos Estados do Sul.
Continuamos na história do horror ao contemplarmos a hipótese de Donald Trump ser o próximo Presidente. Se o for, é porque os eleitores se identificam com os seus programa (?) e personalidade. Em artigo recente aqui no “Público”, traçava-se um interessante retrato das suas principais características. Narcisismo, incapacidade de empatia com os outros, desprezo pelas opiniões contrárias e inadaptação a uma sociedade cada vez mais multicultural. Se Trump for eleito, tudo isto são, também, traços vincados da maioria dos norte-americanos. Os muçulmanos são todos terroristas, as mulheres são objectos condenados a servir os homens, os negócios e a economia são selvas, os mais fracos morrem e as minorias são estranhas e merecem repressão.
Como vários cidadãos conhecidos e menos conhecidos têm dito, também emigraria para o Canadá com alguém assim ao leme. Mas a questão é bem mais profunda: o sucesso de Trump deve-se a uma incapacidade das anteriores Administrações em cultivar valores universais de respeito pelos direitos humanos e de colocar em prática a palavra “God” de que se usa e abusa em qualquer discurso oficial. Os EUA estão assustados com o terrorismo e com uma brutal crise económica e alguém “out of the box”, politicamente incorrecto, surge como bóia de salvação para uma América que diz querer voltar a ser “grande”.
Se Trump vencer, é melhor destruir a estátua da Liberdade, ou melhor, transplantá-la para Cuba, p. ex. Será que a população americana em debandada acaba a tomar banhos de sol em Varadero?




5 comentários:

  1. Caro André Lamas Leite:
    Como português que não conhece no terreno os EUA, apenas o que vou lendo, ouvindo e vendo à distância, considero ao seu texto uma análise muito lúcida e exaustiva.
    No entanto, permita-me que lhe deixe uma questão e uma observação.
    Questão: «Continuamos na história do horror ao contemplarmos a hipótese de Donald Trump ser o próximo Presidente. Se o for, é porque os eleitores se identificam com os seus programa (?) e personalidade.»
    A complexidade da eleição americana permite-nos que afirmemos que a eleição de Trump significa a identificação do eleitorado com o que ele representa?
    Observação: Não acha que o fenómeno Trump resulta de males de que o mundo padece um pouco por todo o lado, resultantes da transformação das sociedades, em que os radicalismos são a resposta encontrada para os receios, as incomodidades, a incapacidade de negociação, compromisso e aceitação do Outro, o diferente (nos mais diversos níveis da vida social)?
    Se reparar bem, mesmo entre nós, que somos o 5.º país mais seguro do mundo (atrás da Islândia, Dinamarca, Nova Zelândia e Áustria), em que não se usa arma à cintura, em que pé está a discussão política?
    Mentiras, ocultação do que de bom o adversário (transformado facilmente em inimigo) fez e exaltação do que de mau fez, deturpação propositada da verdade, incapacidade de discussão e de aceitação das ideias do Outro, e isto feito no dia-a-dia por pessoas que consideramos urbanas e, até, mundividentes, pela suas vivências práticas.
    Não estou a falar dos chamados broncos analfabetos das berças.

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  2. *** LONG - Dividido em dois ***

    Caro André Lamas Leite, este seu texto é bastante interessante embora sobradamente estereotipado. Alguns dos pontos a que alude interessam-me pelo que irei falar um pouquinho sobre todos.

    1) Forma de tratamento da criminalidade: tenho para mim que o objectivo das políticas penais deve ser, antes e acima de tudo, a prevenção e disuassão do crime. Por este motivo não tenho limites - excepto a pena de morte que, na forma como é apresentada no ocidente, não é disuassória - às penas aplicados aos criminosos. Penas de prisão longuíssimas, castigos corporais (como em Singapura, por exemplo), trabalhos forçados, confisco de propriedades, shame sanctions, enfim, nada disso me choca nem incomoda quando aplicado a criminosos. Tudo para que a mera menção da palavra "penitenciária" cause calafrios tanto em quem a pronuncia como em quem a ouve. Ora, daqui podemos extrair que a legislação penal que o André Lamas Leite critica por excessiva eu acho ainda assim algo benévola, dependendo, claro, de estado para estado dado a legislação penal ser competência estadual e não federal. Por exemplo, a "Three Strike Rule", que aprecio sobremaneira, existe nuns estados, não existe noutros e, mesmo nos que existe, não é igual em todos. Sinceramente o meu modelo ideal de legislação penal é a de Singapura da qual, naturalmente e em geral, os estados Americanos se aproximam muito mais do que os estados Europeus.

    2) Saúde: há entre Europeus e Americanos diferentes abordagens ao direito à saúde. Para os Europeus é algo básico a que se tem direito apenas por estar vivo. Para os Americanos não e é até um símbolo de status e de progressão profissional ter melhores seguros de saúde. As condições dos seguros de saúde são, aliás, ponto importante nas negociações salariais. Se se recordar aquando do Obamacare, que não é um sistema universal de saúde, sequer, para horror dos Europeus, a sociedade Americana dividiu-se sensivelmente ao meio, com gente a favor e gente em contra. A criação dum sistema universal de saúde contaria com a oposição duma larga maioria da sociedade Americana. Isto sem prejuízo da existência duma série de free clinics e iniciativas gratuitas de saúde financiadas em larga medida por mecenas mas aqui está a diferenciação importante feita pela sociedade Americana, na saúde como em várias outras coisas: uma coisa é ter-se por ter-se direito a ter e outra bem diferente é ter-se por caridade e esmola de benfeitores. Esta distinção é muito marcada em vários aspectos da sociedade Americana, a saúde um deles. Normalmente os Europeus não entendem a abordagem Americana à saúde (e a várias outras coisas) e vice-versa. Não tentemos é impôr a outras sociedades a nossa visão que, no nosso mundo é maioritária mas noutros pode ser fortemente minoritária. Já quanto ao Obamacare, enfim, Obama não tentou implementa-lo. Implementou mesmo. E os resultados estão a ser desastrosos para a generalidade dos Americanos. Os benefícios para os que não tinham seguros são pequenos mas os efeitos negativos estão a expandir-se a toda a sociedade levando gente que anteriormente tinha seguros a ter que reduzir muito as prestações contratadas devido a um acréscimo substancial e generalizado dos prémios. As famílias Americanas gastam mais em saúde hoje em dia do que nalgum momento histórico anterior.

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  3. 3) Porte de armas: é algo que os Europeus, excepto os Suíços onde todas as famílias têm uma arma de guerra em casa, não conseguem de maneira alguma entender. A posse de armas é algo que vai muito fundo na psique Americana e não se altera da noite para o dia. Pode dizer-se que um civil poder ter uma AR-15 é excessivo? Sim, provavelmente é excessivo. Mas é algo muito importante para os Americanos o que tem também a ver com a própria geografia Americana. E, caro André, não é demais lembrar que o atentado de Orlando aconteceu numa Gun Free Zone. Provavelmente se não fosse isso as suas consequências teriam sido menores. Declaração de Interesses: embora não vivendo nos US tenho uma t-shirt em defesa da 2ª Emenda vendida pela Barrett com uma frase do seu CEO em defesa do porte de armas. Os bloqueios às iniciativas de Obama neste particular não se prendem com o presidente ser preto, branco, amarelo ou verde às riscas roxas. É uma questão de convicção e eleitoralismo. O controlo das armas não é aceite por uma vasta franja da população Americana e é dos temas que mais polariza a sociedade Americana.

    4) Trump: penso que o André exagera na apreciação que faz de Trump. Diria mesmo que comenta a caricatura de Trump e não Trump em si.

    5) Guantanamos: Ufff, ainda bem que não conseguiu fechar essa coisa. É um problema muito complexo dado haver lá gente que se libertada poria em risco tanto os EUA como a Europa mas que em simultâneo não pode ser julgada nos tribunais federais nuns casos por questões jurisdicionais, noutros por invalidade da prova obtida. Concordo que é uma situação sui generis e desagradavel. Mas entre haver Guantanamo ou ter aquela gente toda à solta parece-me preferivel tapar o nariz e engolir Guantanamo.

    Em suma, não me surpreende o seu post, de todo. Expõe uma visão comum que os Europeus têm dos Americanos. Os Americanos também escrevem as suas coisas sobre os Europeus e o engraçado da questão é que há em ambas muito de estereótipo e ainda mais de incapacidade de entender as razões dos outros para serem como são.

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  4. Eu também vi o artigo sobre a personalidade de Trump. Para mim é um artigo tão enganador como este último, e até é mistificador, porque vem tentar dar aparência de exactidão numa área que, comprovadamente, é a mais atrasada da Psicologia. Isso vem de um modismo. É melhor pegar em algo mais sólido e há tanto por onde fazê-lo!

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  5. Texto patético. A matança de Orlando tem tanto a ver com a política dos EUA como a fusillade de Paris tem a ver com a política francesa ou o massacre de Bruxelas com a sociedade belga. Enquanto não se tratar a besta pelo nome, e actuar em conformidade, por todo o mundo livre, seja a entregar os regressados do ISIS às autoridades sírias e iraquianas ou a questionar a construção de mesquitas, no Ocidente, por comunidades cuja tolerância se caracteriza pela degola dos que pensam diferente, nos países de origem, só podemos ir de mal a pior, até que os Trumps rebentem com tudo.

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