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sábado, 11 de junho de 2016
História gótica
80. Desapareceu da memória de todos Nergüi, menos da memória da avó, que desde cedo lhe ensinou que há espíritos, que estes não são bons, que não são bons os homens que se deixam possuir por eles.
A avó lembrava-se ainda de outra coisa sempre que ensinava a Nergüi a linguagem que permite ligar os dois mundos. Lembrava-se da sua mãe e de como tinha sido arrancada deste e levada para o outro. Lembrava-se de uma luta longa e esgotante, da sua mãe falando a língua estranha que ela fora aprendendo e agora ensinava, da sua mãe caindo febril no chão de terra. Os olhos foram afundando, a face tornou-se pálida, quase transparente, eram visíveis os ossos e as veias. Todos percebiam o que se passava e todos desviavam os olhos. A mãe contara-lhe, nos intervalos do transe, que já outros na família tinham enfrentado espíritos e que nenhum desses antepassados até hoje vencera o combate. Não sabia o que levava os espíritos a escolhê-los, mas sabia que eram escolhidos há séculos. Certamente procuravam alguém nas gerações desta linhagem, que não tivessem desistido ainda indicava que não o tinham, que não a tinham, encontrado. Quando a mãe perdeu o combate, a avó de Nergüi esperou que fosse ela a procurada e que fosse finalmente deixada em paz a sua casa. Um confronto tão demorado, tão duro, um adversário tão resistente e corajoso como a sua mãe, que outra presa poderiam os espíritos caçar que a superasse. Noites e noites esperou por ela supondo que seria agora também um dos habitantes desse outro mundo para onde não desejara ir. Queria que a mãe regressasse ainda que já não fosse a mãe que conhecera, e por isso ao mesmo tempo temia esse regresso, porque a mãe que conhecera tinha já desaparecido muito antes de ter sido derrotada. Os homens, e as mulheres, possuídos pelos espíritos não são bons. E a mãe tinha sido a melhor das mães, a mais atenta, a mais doce, a mais alegre. Dos nove irmãos da avó de Nergüi sete sobreviveram e deviam duas vezes a vida aos cuidados da mãe que os pusera neste mundo e os salvara dos perigos dele. Tinha sido, porque no seu enfrentamento com os seres do outro mundo tornara-se ríspida, violenta até, afastara os filhos com insultos e acusações, chegara a ameaçá-los com pragas, maldições, doenças, calamidades. Jurou que iria fazer estéreis as suas mulheres e bêbedos os seus maridos. Que se gorariam todos os seus negócios. Que os ventos das estepes seriam muito mais frios para eles e as raposas mais espertas. Estes maus-tratos só a avó de Nergüi tinha suportado sem mágoa. Desgosto sim, mas não mágoa. Permanecera ao lado da mãe, compreendera o seu destino. E quando tudo acabou, não chorara, não se choram os valorosos que caem em combate, os guerreiros indómitos, os heróis. E a mãe tinha sido um deles. Não recebeu a sua visita, ou a visita do espírito em que se teria transformado. Não voltou, na verdade, a ver sinais dos malditos, e procurou-os nos olhos dos irmãos temendo que um deles pudesse ser o próximo. Nos olhos dos sobrinhos, nos olhos do marido assim que se tornou seu marido, nos dos filhos. Quando chegou a geração dos netos, já não procurava. Nem precisou de procurar, os olhos de Nergüi disseram-lhe tudo, que com ele a batalha recomeçaria. Havia que prepará-lo, sem gastar tempo com lamentações ou súplicas àqueles que nunca as tinham atendido. Começaram as lições da língua estranha, as histórias dos seres mais estranhos ainda, a listagem dos seus caprichos e armadilhas. Entre aprender a montar cavalos e a apanhar animais com laços, Nergüi ouvia a avó com complacência, era costume os velhos serem supersticiosos, terem manias e obsessões. E só no meio do deserto que atravessou percebeu que os espíritos de que a avó lhe falava existiam e que em breve seria um deles.
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