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segunda-feira, 27 de junho de 2016
História gótica
86. "Não temos." Quem falava era um homem com uma argola de ouro na orelha esquerda e uma pala num olho, o esquerdo também.
Trazia um lenço vermelho vivo na cabeça, só lhe faltava mesmo uma espada ou um sabre à cintura, ou um pedaço de madeira a fazer as vezes de uma perna, para ser um daqueles piratas de livro infantil, coxos mas hábeis nas abordagens, ou manetas mas temíveis com os punhais que seguravam entre os dentes. Que deveriam ser podres por causa do escorbuto, mas ainda assim prendiam bem as espadas quando os piratas subiam pelas escadas de corda até aos cestos de gávea de onde perscrutavam o horizonte em busca de navios carregados de riquezas até às amuradas, lentos e pesados e fáceis de apanhar. Viam longe apesar do único olho, punham sobre ele uma mão como uma pala protegendo-o do sol e sabiam distinguir um barco de uma baleia ou de uma ilha. Era muito raro enganarem-se, até porque um engano podia ser fatal. Quantas vezes um navio que parecia ser de carga era um brigue de guerra disfarçado que caçava piratas para os fazer balançar pelo pescoço nas praças das cidades portuárias. Por vezes os súbditos de sua majestade nem esperavam pela chegada ao porto e penduravam-nos logo ali, nas vergas onde antes se equilibravam para enrolar as velas, ou para as abrir e vê-las enfunadas a transportar o navio sobre as ondas nas perseguições e nas fugas. Já não se equilibravam, eram empurrados e caíam amaldiçoando rei e pátria. Alguns cantavam pela última vez versos onde se falava de rum e de bandeiras negras. Ou de piratas lendários, do Corsário Vermelho que encheu de sangue os mares por onde navegou. Do Corsário Azul, rápido como um tubarão. Do Corsário Negro, o mais misterioso e brutal, apanhado à traição e enviado para a metrópole para ser executado frente à populaça que lhe seguia as aventuras. Dizem que o traidor se atirou da gávea porque não suportava ver entrar por cada porta o Corsário que traíra, seguido pelo barulho dos ossos que ele em breve seria. Não andou na prancha, ninguém na verdade andava na prancha, ninguém tinha desconfiado dele, continuou a fazer parte da tripulação atónita pela prisão do mais infame dos bandidos que alguma vez tinham sulcado as águas azuis do Pacífico e as águas cinzentas do Atlântico. Há traidores entre os piratas como há traidores entre toda a gente, e os piratas são atormentados por fantasmas como todos aqueles que violam o pacto invisível que ata os homens uns aos outros e cada um deles a um sacerdócio comum. Mesmo quando abjuram da lealdade ao bando criminoso e passam para o lado da lei, mesmo quando escolhem o partido do bem, o das vítimas, o dos despojados de propriedade e família, os traidores sofrem porque a traição é um mal em si mesmo que nada apazigua ou diminui. Também têm consciência os criminosos, também para eles há limites, e a lealdade é um deles. Ou é quando não se vive do crime sozinho. Nada no sofrimento do traidor tem a ver com o arrependimento. Ou com o medo. A dor que não passa é a da admiração que até o vício tem pela virtude. É raro aquele que não tem no fundo da alma um padrão que separa o que é devido do que é gratuito. E aqueles a quem nenhuma vileza perturba costumam estar entre os que enforcam piratas respeitavelmente. O nómada, de braços cruzados e inspeccionando o rapaz de cima a baixo, acrescentou, "Temos Zhephaniah, A Grande."
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