quarta-feira, 1 de junho de 2016

Uma crítica ideológica?

No programa Números do dinheiro da RTP 3, na crítica que fez ao livro Crise e Castigo, Ricardo Paes Mamede vislumbrou uma contaminação ideológica dos autores, os meus ilustres colegas de Blogue Fernando, Luís e Pedro. Tratando-se de um trabalho científico, não é um reparo de somenos. O que Paes Mamede está a dizer é que os autores olharam e analisaram os dados condicionados por uma tese ou visão preconcebida, um preconceito ou pré-conceito. Por causa dessa visão distorcida, desvalorizaram aquele que é, em seu entender, o factor fundamental da crise portuguesa: a estrutura produtiva.
Paes Mamede não nega o papel do Estado no extraordinário crescimento económico entre 1986 e 2000 (taxa média anual de 4%). Todavia, atribui-lhe um papel secundário na “longa estagnação”, que vai de 2001 até aos nossos dias. Há aqui uma visão “benigna” da actuação do Estado. Dito de outro modo, o Estado só parece ser importante quando as coisas correm bem; quando correm mal, a culpa principal é das empresas e dos empresários, que não se modernizam, não inovam, não se adaptam, vivem de rendas, etc., como se o Estado estivesse inocente neste estado das coisas.
Ao menos a tese dos autores de Crise e Castigo tem lógica: o Estado foi um actor principal na fase áurea da integração europeia, criando infraestruturas necessárias (estradas, escolas, hospitais, estado social, etc.), e continuou a sê-lo quando as coisas começaram a descambar.
O sucesso, para o qual o Estado muito contribuiu numa primeira fase, lançou as sementes do que viria a seguir. O Estado deixou-se capturar por grupos de interesses (construção, sector financeiro), deu incentivos errados às famílias e empresas (juros bonificados, isenções de IMI, PPP, etc.) e, ao crescer demasiado, perdeu força e autoridade, ficou pesadão, balofo, sem agilidade e rapidez. No fundo, este é um dos problemas das políticas keynesianas a médio e longo prazo: o Estado vai crescendo, criando estruturas que, depois, se tornam difíceis de desmontar e remover. O que o Fernando, o Luís e o Pedro fazem é mostrar, de forma sustentada, por que motivo o Estado se tornou, com o tempo, um problema, sendo o elevado endividamento público um dos sintomas. Ignorar ou desvalorizar isto é passar ao lado das causas da crise.

10 comentários:

  1. Concordo (quase) plenamente, JCA. Só noto que o Estado não se tornou pesado por causa das políticas de obras públicas: pesado já ele era e é, de certa forma, um "traço cultural" nosso - repare que no Estado Novo em que o Estado era, de facto, formalmente mais "leve" este era substituído em grande parte por mecanismos mais ou menos informais de "paternalismo estatista".

    O problema aqui foi, e aí subscrevo sem reservas, a captura do Estado por interesses económicos e não tanto a sua dimensão (não, o país não foi ao charco por causa, ou principalmente por causa, dos funcionários públicos, do SNS e da Segurança Social).

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  2. O problema de Portugal (ao contrário da Grécia, por exemplo), foi, e continua a ser, muito mais o endividamento privado do que o público. Os juros bonificados, isenções de IMI, PPP, pouco contaram ao lado da facilidade com que os bancos emprestavam dinheiro, por exemplo. O problema do estado português e da UE, já agora, não foi a sua acção, mas a sua inação, sobretudo na regulamentação da actividade bancária.

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    1. Grande parte do endividamento das famílias era com habitação. No fim dos anos 90, 2 em cada 3 euros de empréstimo para a habitação tinham a forma de crédito bonificado (pelo estado). Parte do endividamento das empresas era também induzido pelo Estado.
      O livro não se limita a apresentar uma tese. Apresenta também imensos dados que a suportam. Para negar contestar a tese não basta conhecê-la; necessita também de conhecer os dados que a apoiam para poder apresentar outros. Caso contrário passamos a vida a falar de cor e nunca se avança para um entendimento da forma como aconteceu a crise.

      PS Espero que tenha ficado claro o descarado convite a que leia o livro.

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    2. É um livro fundamental, um contributo essencial para quiser perceber melhor como é que chegamos onde chegamos.

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    3. Luiis, bonificações, IMI e PPP, são coisas de natureza diferente e que merecem análise diferenciada. Quanto aos incentivos ao crédito, os governos fizeram o que tinham a fazer. Repare que nem era estimulo ao consumo, mas à habitação, que é um bem essencial. Os bancos, por seu lado, teriam de controlar o acesso, garantias, análise de risco, etc. Eu passei por isso, e não vi nenhum funcionário do governo a analisar-me o dossier ao balcão. Faltou Estado, sim, incluindo supervisão e regulação, etc, incluindo noutros casos agora tão mediáticos, que nos custam tão caro. Alguém tem ideia do montante já gasto por essa Europa fora com o resgate dos bancos? A maior parte dos nossos actuais problemas foram e são fruto de acções particulares, dos indivíduos, das famílias, das empresas e das instituições de crédito, nem sequer apenas bancos.

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    4. Perfeitamente, caro Renato. E precisamente por essa razão é que o título da livro está bem esgalhado - A alusão Dostoievskiana não deve ser avaliada do ponto de vista existencialista mas sim da hipótese redentora colectiva. Será um crime e castigo mais Tomista e Agostino!!

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    5. E o endividamento das famílias com habitação deveu-se essencialmente à manutenção durante décadas do congelamento das rendas, inicialmente apenas em Lisboa e Porto, mas estendido ao resto do país (sem dúvida que em nome do princípio da "igualdade") depois do 25.4. Foi uma medida afonsina (de Afonso Costa), reiterada no período antonino (de António, sem ser o santo). E foi uma das mais nefastas medidas regulatórias do igualmente nefasto Estado Português em todo o século XX.

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    6. "E o endividamento das famílias com habitação deveu-se essencialmente à manutenção durante décadas do congelamento das rendas"

      Não entendi.

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  3. Ó JCA, mas desde quando é que a economia deixou de ser a arte de construir e escolher os números que satisfazem a narrativa ideológica dos autores? Onde está a ciência que suportou a descontracção com que o BCE deixou taxas de juro baixas incendiar o crédito, no início da década, ou que, mais tarde, em 2008 e depois ainda em 2011, fez carregar os botões de aumento, às pressas, desnorteado, fazendo pensar que a batalha era na inflação quando afinal estavamos a caminho da deflação, lançando o pânico nos mercados? Essas referências estão, e muito bem, no livro. Como todas as outras. Acho o livro muito completo, de leitura agradável, robusto em referências, bem estruturado. É um contributo notável ao debate. Mas os mesmos dados permitem carregar as tintas ao gosto de quem os interpreta. Escolher para título "Crime e Castigo" ou "Fomos bem tramados pelo Banco Central Europeu" nada tem de científico.

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  4. Eu adormeci na parte final da transmissão televisiva, já depois de ter sido referido algo sobre isso "en passant". À partida, a referência "ideológica" terá significado "económico". Irei ver, em vídeo, a parte a que não assisti.

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