O terror de Nice, na
noite em que se comemorava o advento do Estado de Direito, com a capitulação do
Ancien Régime não pode deixar ninguém
indiferente. Os corpos de crianças, adultos e idosos falam a linguagem
eloquente do silêncio da barbárie.
Todos nos questionamos
sobre as motivações do crime, em particular daquele que é movido pelo ódio e
pelo extremismo político-ideológico e, porventura, religioso. Trata-se de
questão sempre presente desde que o género humano existe. Várias têm sido as
tentativas de explicação, desde a biológica, bastando lembrando o “criminoso
nato” de Lombroso, até às perspectivas que se lhe seguiram, de cariz
sociológico, com Ferri e Garófalo. Mais tarde, com o advento da Psicologia e da
Psiquiatria, autores como Pinatel encontram no funcionamento da personalidade
humana as razões para a prática delitual. No século passado, com os avanços da
Genética, andámos, em vão, à procura do “gene do crime” e, na actualidade, são
as Neurociências, com os seus modernos meios, que tentam achar no cérebro
humano uma malformação ou um dado funcionamento bioquímico apto a lançar alguma luz.
Estas e outras tentativas
serão sempre votadas ao insucesso. Certo é que o crime ou, se pretendermos, a déviance em geral, é um todo “bio-psico-sociológico”,
não sendo hoje de grande relevo na Criminologia a busca do porquê do crime, mas
o estudo dos mecanismos de controlo social formal e informal, do agressor, da
vítima e do sistema que, de algum modo, os constrói e modela. O desvio não é um
alienus; é co-natural ao ser humano;
está nele como os seus próprios órgãos.
Claro que os
extremismos potenciam atitudes de loucura, de insanidade social, de indelével
desrespeito pelo valor da vida, supostamente menor na balança da ponderação do
terrorista, por comparação com o adimplemento de um plano superior, divino ou
político. O seu elevadíssimo grau de imprevisibilidade aumenta quando estamos
perante indivíduos que já nasceram em países ditos “ocidentais” e não foram
capazes ou não quiseram beber dos valores ínsitos aos fundamentos do Estado de
Direito.
Quanto a estes, as
sociedades só têm uma via: a luta, ainda que armada, para a conservação do seu
“modo de vida”. Lá, onde o Daesh tem o seu proto-Estado, como nos vários países
que têm sentido o terror na pele dos seus filhos. A relativa tibieza dos
governantes europeus e norte-americanos não tem ajudado. Cada vez é mais clara
a urgência de uma verdadeira guerra no solo onde o cancro se instalou, através
de uma aliança de Estados sob mandato da ONU. Mas os interesses dos países são
contrastantes e, por exemplo, temos a ingenuidade europeia em contraste com o
cinismo e o aproveitamento descarado de países como a Rússia e a Turquia.
Para além disto, os banlieues franceses ou de qualquer outro
país têm produzido um exército de desenraizados, perdidos entre as origens
familiares nas quais se não revêem e o meio onde muitos já nasceram e que os
trata como verdadeiras “periferias”. Nunca foi tão urgente o apelo repetido do
Papa Francisco. Respeitando as idiossincrasias de cada um, os Estados devem
esforçar-se por empreender um programa complexivo de educação para a paz e a
cidadania, para a inclusão e a diferença, a começar nas escolas, mas a
continuar nas ruas e locais de trabalho. O ostracismo gera ódios que explodem
mais que bombas-relógio.
Estruturas como o Daesh
têm-se sentido reforçadas pelo destroçar da UE em que os egoísmos nacionais
campeiam, por uma política externa dos EUA no mínimo ziguezagueante e por um Zeitgeist que, não sendo “o fim da
História”, soa a um anúncio em lume brando de uma mutação societal de magnitude
assinalável. Vários têm sido, aliás, os sociológicos que para tal vêm
alertando, com destaque para Bauman, Elias ou Lipovetsky.
Ninguém tem solução
para o terrorismo porque ele nasce no coração das pessoas, qual erva daninha
que corrói e metastiza, tudo tomando. Os sentimentos de piedade e de compaixão
de que falavam os primeiros sociólogos como Comte ou mesmo Durkheim não têm
adesão à realidade e, muito menos, a predisposição para a justiça tão cara a Paul
Ricoeur. A “vontade de poder” de Foucault tudo vem assaltando e os corpos na
idílica Riviera francesa, por entre glamour
e vedetismo, mostram até aos que se julgam mais poderosos que ninguém está a
salvo.
O pior a fazer, como
tantas vezes repetido, é cedermos ao jogo do inimigo. Sim, estamos em guerra, e
num conflito bélico há inimigos, a tratar nos quadros do Estado de Direito (e
não como pretende Jakobs), mas com a força militar, se necessário, que tantos
autores de Direito Internacional Público, à cabeça dos quais Grócio, bem
justificaram como sendo tão indesejável quanto urgente.
Curvamo-nos todos
perante os heróis de uma outra tomada da Bastilha: a da perene luta por um
mundo onde os valores para nós orgânicos não sejam obliterados. A coragem dos
revolucionários de 1789 é a nossa mais solene inspiração.
Muito bem
ResponderEliminarCaro André Lamas Leite, gostei muito de ler este seu post. Fico, porém, com a questão sobre se a cultura e os valores Europeus são capazes de resolver este problema. Aliás, o seu enquadramento da resolução no "Estado de Direito" deixa-me logo várias dúvidas não podendo o meu espírito afugentar imediatamente a pergunta sobre se o "Estado de Direito" conforme entendido na Europa Ocidental (excepto em Espanha) e, particularmente, em Portugal e França, tem as ferramentas necessárias a lidar com um assunto destes. Alguns exemplos soltos para ilustrar esta minha dúvida.
ResponderEliminar1) Reduzir muito esta ameaça requer, como aponta, dar guerra àqueles que nos ameaçam e isso envolve, muito claramente, apoiar Bashar al-Assad desde logo, mas também al-Sisi no Egipto entre outros similares que são garantes de segurança nos seus países e na Europa. Tem a Europa o mindset necessário a esse apoio?
2) A Líbia é um caso muito mais confuso e, após o tremendo disparate do derrube de khadaffi, é neste momento extremamente difícil encontrar um unificador do país sem guerra. Ora, isto requer ocupação militar da Líbia por potências ocidentais (talvez com os Russos também embora me cause imensa azia dizer isto...) durante um período prolongado até se conseguir pacificar o sítio e botar um governante que dê garantias de segurança. É a Europa capaz de fazer uma coisa destas?
3) Ao nível interno, aceitam os valores Europeus a introdução de medidas sérias de controlo das populações e de quem entra no continente? Não é nada de extraordinário; trata-se simplesmente de aplicar medias normais nos EUA, Austrália, Canadá, entre vários outros há várias décadas. Refiro-me, claro está, a background checks exaustivos de todos os candidatos a viver nos países Europeus (sejam refugiados ou imigrantes, é igual).
4) Aceitam os valores Europeus o tratamento dos estrangeiros de forma idêntica â existente nos países que referi em 3? Nomeadamente, deportação dos condenados por crimes e mesmo retirada da nacionalidade quando não é a de origem? O uso desta medida teria prevenido o atentado de ontem. Porém duvido que o que quer que seja disto seja facilmente aceite (por agora...) pelas populações dos países Europeus.
Quatro exemplos soltos para ilustrar as minhas dúvidas quanto a esta questão. Poderiam ser centenas.
Só um à-parte: nem sequer em França o 14 de Julho de 1789 representou o "advento do Estado de Direito" (que já existia em Inglaterra pelo menos há 100 anos, para não dizer mais, mas tomemos a "Glorious Revolution" de 1688 como referência). 1789 representou mais o "advento do Estado da Guilhotina", essa grande igualizadora.
ResponderEliminar"Estruturas como o Daesh têm-se sentido reforçadas pelo destroçar da UE em que os egoísmos nacionais campeiam, por uma política externa dos EUA no mínimo ziguezagueante "
ResponderEliminarEsses egoísmos são bem patentes na extrema direita e na esquerda e extrema esquerda. O partido trabalhista colheu o que semeou. Em Portugal o bloco e o pcp também têm mostrado claramente o que é o egoismo. O ps actual idem. Obama tem sido uma desgraça. Não se vai lá a fazer de conta.