Vivia de assaltos, como este, que lhe rendera uma malinha preta de croché muito promissora à vista. Era pequena mas pesada, logo, devia ter dentro coisa que prestasse, uma carteira cheia de moedas brilhantes, ou um terço de prata, até mesmo um dedal de ouro, quem sabe. Encostou-se ofegante à parede do beco onde se refugiara, e começou a inspecção do saque. Estava escuro no beco, e uma olhadela para dentro da bolsa não revelou nada. Como tinha um coto de vela e fósforos no bolso do casaco, e a malinha estava mesmo pesada e fértil, estendeu no chão um lenço muito encardido, cheio de nódoas de gordura e restos de comida secos, e despejou os conteúdos sobre ele. Caíram muitos objetos, e o corcunda aproximou a vela do chão. Começou o exame. Eram vários pacotinhos feitos de um papel grosso como o das mercearias, e uma carteira que não era tão pesada como ele esperava. Mas talvez os cartuchinhos anunciassem coisa melhor. Podia ser que a mulher tivesse levado para casa algum cálice da igreja para o limpar, um cálice de ouro e, com sorte, com alguma pedra preciosa incrustada. Ou talvez os embrulhos guardassem alguma jóia para oferecer a algum santo. Ou velas de altar, o corcunda sabia onde vender velas de qualidade por bom dinheiro, menos do que conseguiria com uma jóia, mas ainda assim um bom dinheiro. E se guardassem um missal, ou uma miniatura da cruz, ou um pratinho de colectas, também não era mau. O corcunda conhecia o mercado das peças pias, onde se comprava o velho que se vendia como novo, e não teria dificuldade em fazê-los valer alguma coisa. Desembrulhou o primeiro pacote. A princípio não conseguiu discernir o que lá estava. Aproximou ainda mais a vela. E, de boca aberta e olhos arregalados, viu umas cascas e uns caroços de fruta. Mas manteve-se esperançoso e atacou o segundo pacote. Continha uns restos quase secos de uma hortaliça qualquer. Abriu ainda mais a boca e arregalou ainda mais os olhos. No terceiro encontrou um lenço tão sujo como o seu, e no quarto umas meias com tantos buracos que eram mais buracos do que meias. Mesmo assim, a esperança sobrevivia. Ainda tinha alguns pacotes para abrir, ao todo eram oito, e não podiam ser todos um balde de água fria. Agarrou o quinto pacote. De lá dentro saiu uma luva muito gasta e desemparelhada. A esperança do corcunda começava a ficar abalada. Mas o sexto pacote era maior e mais pesado do que os anteriores, o que lhe levantou o espírito. Abriu-o com cuidado, e descobriu uma coisa de madeira e metal, tão informe e estragada que quase nem se conseguia ver que era uma daquelas armadilhas para ratazanas onde se punha um pedaço de queijo e se esperava pelo som do golpe fatal. Zzzzap. No sétimo cartucho estava uma caneta de aparo tão embotado que dificilmente voltaria a escrever. O oitavo, ai o oitavo tinha que embrulhar uma colher de prata, ou um relógio, mas não. Uma colher muito torta e corroída, uma colher inútil, acompanhava uma chávena lascada e já sem pega, que só alguém com muita destreza e coragem seria capaz de usar sem encher a cara e as mãos de cortes. O corcunda sentiu-se completamente derrotado. E desiludido. Mas também perplexo. O que levaria alguém de mente sã a carregar tanto lixo, e tão primorosamente arrumado, não era capaz de perceber. Nunca lhe passaria pela cabeça que os pacotes carregavam as ofertas para os pobres com que a mulher cumpria o dever cristão da caridade.
Um blogue de tip@s que percebem montes de Economia, Estatística, História, Filosofia, Cinema, Roupa Interior Feminina, Literatura, Laser Alexandrite, Religião, Pontes, Educação, Direito e Constituições. Numa palavra, holísticos.
quinta-feira, 14 de julho de 2016
História gótica
92. Falso Dimitri, assim era conhecido o corcunda.
Vivia de assaltos, como este, que lhe rendera uma malinha preta de croché muito promissora à vista. Era pequena mas pesada, logo, devia ter dentro coisa que prestasse, uma carteira cheia de moedas brilhantes, ou um terço de prata, até mesmo um dedal de ouro, quem sabe. Encostou-se ofegante à parede do beco onde se refugiara, e começou a inspecção do saque. Estava escuro no beco, e uma olhadela para dentro da bolsa não revelou nada. Como tinha um coto de vela e fósforos no bolso do casaco, e a malinha estava mesmo pesada e fértil, estendeu no chão um lenço muito encardido, cheio de nódoas de gordura e restos de comida secos, e despejou os conteúdos sobre ele. Caíram muitos objetos, e o corcunda aproximou a vela do chão. Começou o exame. Eram vários pacotinhos feitos de um papel grosso como o das mercearias, e uma carteira que não era tão pesada como ele esperava. Mas talvez os cartuchinhos anunciassem coisa melhor. Podia ser que a mulher tivesse levado para casa algum cálice da igreja para o limpar, um cálice de ouro e, com sorte, com alguma pedra preciosa incrustada. Ou talvez os embrulhos guardassem alguma jóia para oferecer a algum santo. Ou velas de altar, o corcunda sabia onde vender velas de qualidade por bom dinheiro, menos do que conseguiria com uma jóia, mas ainda assim um bom dinheiro. E se guardassem um missal, ou uma miniatura da cruz, ou um pratinho de colectas, também não era mau. O corcunda conhecia o mercado das peças pias, onde se comprava o velho que se vendia como novo, e não teria dificuldade em fazê-los valer alguma coisa. Desembrulhou o primeiro pacote. A princípio não conseguiu discernir o que lá estava. Aproximou ainda mais a vela. E, de boca aberta e olhos arregalados, viu umas cascas e uns caroços de fruta. Mas manteve-se esperançoso e atacou o segundo pacote. Continha uns restos quase secos de uma hortaliça qualquer. Abriu ainda mais a boca e arregalou ainda mais os olhos. No terceiro encontrou um lenço tão sujo como o seu, e no quarto umas meias com tantos buracos que eram mais buracos do que meias. Mesmo assim, a esperança sobrevivia. Ainda tinha alguns pacotes para abrir, ao todo eram oito, e não podiam ser todos um balde de água fria. Agarrou o quinto pacote. De lá dentro saiu uma luva muito gasta e desemparelhada. A esperança do corcunda começava a ficar abalada. Mas o sexto pacote era maior e mais pesado do que os anteriores, o que lhe levantou o espírito. Abriu-o com cuidado, e descobriu uma coisa de madeira e metal, tão informe e estragada que quase nem se conseguia ver que era uma daquelas armadilhas para ratazanas onde se punha um pedaço de queijo e se esperava pelo som do golpe fatal. Zzzzap. No sétimo cartucho estava uma caneta de aparo tão embotado que dificilmente voltaria a escrever. O oitavo, ai o oitavo tinha que embrulhar uma colher de prata, ou um relógio, mas não. Uma colher muito torta e corroída, uma colher inútil, acompanhava uma chávena lascada e já sem pega, que só alguém com muita destreza e coragem seria capaz de usar sem encher a cara e as mãos de cortes. O corcunda sentiu-se completamente derrotado. E desiludido. Mas também perplexo. O que levaria alguém de mente sã a carregar tanto lixo, e tão primorosamente arrumado, não era capaz de perceber. Nunca lhe passaria pela cabeça que os pacotes carregavam as ofertas para os pobres com que a mulher cumpria o dever cristão da caridade.
Vivia de assaltos, como este, que lhe rendera uma malinha preta de croché muito promissora à vista. Era pequena mas pesada, logo, devia ter dentro coisa que prestasse, uma carteira cheia de moedas brilhantes, ou um terço de prata, até mesmo um dedal de ouro, quem sabe. Encostou-se ofegante à parede do beco onde se refugiara, e começou a inspecção do saque. Estava escuro no beco, e uma olhadela para dentro da bolsa não revelou nada. Como tinha um coto de vela e fósforos no bolso do casaco, e a malinha estava mesmo pesada e fértil, estendeu no chão um lenço muito encardido, cheio de nódoas de gordura e restos de comida secos, e despejou os conteúdos sobre ele. Caíram muitos objetos, e o corcunda aproximou a vela do chão. Começou o exame. Eram vários pacotinhos feitos de um papel grosso como o das mercearias, e uma carteira que não era tão pesada como ele esperava. Mas talvez os cartuchinhos anunciassem coisa melhor. Podia ser que a mulher tivesse levado para casa algum cálice da igreja para o limpar, um cálice de ouro e, com sorte, com alguma pedra preciosa incrustada. Ou talvez os embrulhos guardassem alguma jóia para oferecer a algum santo. Ou velas de altar, o corcunda sabia onde vender velas de qualidade por bom dinheiro, menos do que conseguiria com uma jóia, mas ainda assim um bom dinheiro. E se guardassem um missal, ou uma miniatura da cruz, ou um pratinho de colectas, também não era mau. O corcunda conhecia o mercado das peças pias, onde se comprava o velho que se vendia como novo, e não teria dificuldade em fazê-los valer alguma coisa. Desembrulhou o primeiro pacote. A princípio não conseguiu discernir o que lá estava. Aproximou ainda mais a vela. E, de boca aberta e olhos arregalados, viu umas cascas e uns caroços de fruta. Mas manteve-se esperançoso e atacou o segundo pacote. Continha uns restos quase secos de uma hortaliça qualquer. Abriu ainda mais a boca e arregalou ainda mais os olhos. No terceiro encontrou um lenço tão sujo como o seu, e no quarto umas meias com tantos buracos que eram mais buracos do que meias. Mesmo assim, a esperança sobrevivia. Ainda tinha alguns pacotes para abrir, ao todo eram oito, e não podiam ser todos um balde de água fria. Agarrou o quinto pacote. De lá dentro saiu uma luva muito gasta e desemparelhada. A esperança do corcunda começava a ficar abalada. Mas o sexto pacote era maior e mais pesado do que os anteriores, o que lhe levantou o espírito. Abriu-o com cuidado, e descobriu uma coisa de madeira e metal, tão informe e estragada que quase nem se conseguia ver que era uma daquelas armadilhas para ratazanas onde se punha um pedaço de queijo e se esperava pelo som do golpe fatal. Zzzzap. No sétimo cartucho estava uma caneta de aparo tão embotado que dificilmente voltaria a escrever. O oitavo, ai o oitavo tinha que embrulhar uma colher de prata, ou um relógio, mas não. Uma colher muito torta e corroída, uma colher inútil, acompanhava uma chávena lascada e já sem pega, que só alguém com muita destreza e coragem seria capaz de usar sem encher a cara e as mãos de cortes. O corcunda sentiu-se completamente derrotado. E desiludido. Mas também perplexo. O que levaria alguém de mente sã a carregar tanto lixo, e tão primorosamente arrumado, não era capaz de perceber. Nunca lhe passaria pela cabeça que os pacotes carregavam as ofertas para os pobres com que a mulher cumpria o dever cristão da caridade.
O corcunda aprendeu o que é o “narcisismo comunitário”.
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