89. Iniciou a subida, sempre arrastando a mala. As peças
com que montava pássaros mecânicos capazes de abrir as asas, ou jogadores de
xadrez invencíveis, serviam muitos propósitos.
Podia ser necessário montar um
revólver ou uma carabina. Lembrou-se de um livro que lera na infância acerca de
um branco criado por índios que nunca falhava um tiro. Ainda assim não pudera
salvar os seus irmãos nativos, e viu morrer o último dos moicanos às mãos dos
homens de outra tribo, vendida aos exércitos europeus. Lembrou-se também das
máquinas inventadas que podiam vir a existir no futuro, Náutilo, veículos com
feitio de charuto para ir além da atmosfera terrestre, naves para chegar ao
centro da terra. Talvez viesse a precisar de um balão, não porque fosse dar a
volta ao mundo, mas porque, enfim, fugir daquele lugar seria como dar a volta
ao mundo, afinal poderia precisar de um balão que desse a volta ao mundo. Como
gostaria de estar a comer ovos cozidos ao cronómetro, ou a beber xerez num
clube. Pécuvard era um homem de conforto e da volta ao mundo apreciava mais os
prazeres do que os perigos. O que significa que para ele o perigo não era um
prazer. E isto explica o nó no estômago com que ia subindo a colina e com que
se embrenhava na floresta. Quase dava um salto de cada vez que ouvia ranger um
ramo ou cair uma bolota. As folhas secas que lhe caíam nos ombros quase o
faziam perder os sentidos. Suspendia-se-lhe o fôlego de cada vez que um vento
lhe abria o casaco. Apesar disto, avançava. Mas nem se presumia corajoso por
vencer deste modo o medo, na sua cabeça não havia um único juízo. Só as
sensações do susto e do alívio. E a impressão de uma necessidade que o puxava
colina acima. Pensou nos cavalos que arrastavam homens presos por um laço, uma
forma da justiça do velho oeste. A morte não era garantida, mas tanto mais
provável quanto era acidentado o terreno, veloz o galope e longa a cavalgada.
Grupos de homens de má cara levantavam o pó das ruas de Tombstone ou Deadwood
ou Gulch City e assaltavam bancos, de cara tapada com lenços e chapéus de aba
larga enterrados na cabeça. Heróis e bandidos enfrentavam-se em duelos e
tornavam prósperas as funerárias. Ou melhor, diga-se a verdade, rufias que se
ofenderam nos saloons, movidos a álcool de má qualidade e jogos de póquer,
marcavam encontros fatais ao pôr-do-sol enquanto cuspiam tabaco ou arrancavam
com um tiro o chapéu da cabeça do pianista. Um bêbedo nem sempre acerta, claro,
e de pianistas estava também cheio o cemitério. Pécuvard passou o lenço pela
testa suada agradecendo à sua imaginação saltitante esta ajuda que lhe trazia
para dentro da cabeça os pensamentos que o pavor expulsava. E deixava-se
invadir por tâmaras e oásis e camelos atravessando o deserto. Por miragens. Por
danças do ventre, véus e tapetes voadores. Pareceu-lhe que passava em frente
dos seus olhos uma fada, um sátiro. Ou que homens loiros ferozes desembarcavam
de drakares para violar freiras, pilhar cidades, devastar aldeias. Viu azeite
fervente ser lançado do alto de muralhas e homens armados de escudos e lanças
lutando em planícies. Pensou nas armadilhas, estratégias e sorte que decidem as
batalhas. Nas catedrais e nos venenos. No General Inverno que derrota
imperadores. Em dragões trespassados por espadas. Em aventuras no mar e sereias
e remoinhos. Valeu a Pécuvard nesta subida ter tantas ou mais coisas dentro da
sua cabeça quantas as que tinha dentro da sua mala.
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