Morri.
A princípio não queria acreditar, mas hoje não
há quem me convença do contrário. E são muitos os que têm tentado, fiquem a
saber. Vá-se lá perceber esta mania de se querer estar vivo e, pior ainda, esta
mania de querer que os outros estejam vivos também. Que eu me lembre, nunca
tentei fazer tal coisa, chegar ao pé de um morto e dizer, olha lá, tu estás é
vivo. É, desde logo, deselegante. Meter-se uma pessoa na morte da outra é tão
desagradável como meter-se na vida dela. Mete-te na tua vida, dizemos a quem
quer meter-se na nossa. O mesmo deve passar-se com a morte, que cada um se meta
na sua. E pronto. Mais ainda, é uma temeridade. Não por acaso comecei este
desabafo dizendo que a princípio não queria acreditar. Isto deve querer dizer
que estar morto não se nos apresenta como uma evidência. Logo, que não é assim
tão fácil distinguir o estado de morto do estado de vivo. Daqui, a temeridade
de afirmar que se está vivo ou morto, não apenas acerca de nós próprios mas
mais ainda acerca dos outros. É verdade que também disse no início que hoje não
há quem me convença de que estou vivo. É uma afirmação muito forte, e eu assumo
não apenas a temeridade como o dogmatismo em que consiste fazê-la. Sou
dogmático e pronto. É um dos privilégios de estar morto, depois de tantos anos
vivo e céptico. Não quero com isto dizer que todos os mortos sejam dogmáticos.
Menos ainda que todos os vivos sejam cépticos. Simplesmente especulo que, sendo
estar morto o contrário de estar vivo, pode muito bem acontecer que mortos
sejamos o inverso do que éramos quando vivos. É uma das alegrias do dogmático,
a especulação. A alegria é, aliás, aquilo que começou a convencer-me de estar
morto e não vivo. É que em vivo eu lia poetas. Um deles, o poeta Lucano, escreveu que os deuses escondem dos homens a felicidade da morte para que eles
consigam suportar a vida. Se ele tivesse afirmado que os deuses escondem dos
homens a felicidade da morte para que eles consigam suportar a infelicidade da
vida, ficaria a afirmação mais equilibrada, ou mais simétrica, ou mais o que
quer que seja que satisfaça o nosso sentido estético. Mas talvez a Lucano pouco
importe o que o sentido estético sugere, ou que ele seja satisfeito. Se não
disse que a vida é infeliz foi certamente por boas razões, e pelas melhores
delas até. Que
não sei quais são. Seja como for, de
Lucano obtive o critério para o que me interessa aqui. A distinção entre estar
morto e estar vivo é a felicidade. Foi o que me convenceu a mim. E pronto. Morri.
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