Vários
fenómenos políticos recentes têm sido interligados, a nível teórico e
analítico, por pundits, académicos,
intelectuais e pela população em geral. Entre estes estão a vitória do Brexit,
o sucesso de Donald Trump, o aparecimento de um populismo de esquerda, como o
preconizado pelo Podemos, pelo Syriza e por Bernie Sanders, e o ressurgimento
da extrema-direita europeia, através de figuras como Marine Le Pen (Frente
Nacional) e Frauke Petry (AfD). A estrutura conceptual utilizada para
interligar todos estes fenómenos tem sido a dos perdedores e ganhadores da
globalização. A globalização trouxe muitas vantagens e melhorou as vidas de
muita gente. No entanto, e pese embora o saldo final seja positivo, a
globalização tem também perdedores, que querem o seu mundo (fechado) de volta.
Esta tese tem sido muito propagada, mas tem também muitos problemas, quer a
nível abstracto, como estrutura conceptual, quer a nível concreto, quando
aplicada a fenómenos específicos, como o de Donald Trump. Neste post, deixo
algumas notas sobre os problemas desta explicação no caso norte-americano.
1. Normalmente, há duas grandes explicações dadas para os “perdedores da globalização” votarem em populistas: a explicação económica (“os nossos empregos estão a ir para outros países” ou “as nossas indústrias tornaram-se obsoletas/ficaram para trás”) e a explicação da imigração (“os imigrantes estão-nos a roubar os empregos”). Os problemas começam logo aqui. Primeiro, para o argumento se aplicar, é preciso que, quer os fenómenos económicos quer os fenómenos migratórios que observamos num dado país, sejam consequência da globalização, e não apenas do desenvolvimento económico, demográfico e territorial natural e específico do país. Não temos, pois, contrafactual para a não–existência de globalização. Claro que o mais provável é a globalização ter um impacto nesse desenvolvimento natural, mas não é o único factor que o determina. Isto é importantíssimo de reconhecer. Nem tudo é globalização. O facto da globalização ter naturezas diferentes e velocidades diferentes nos vários países poderá ser, a meu ver, de grande utilidade empírica para percebermos o que se está de facto a passar e o que é premente em cada país, em cada momento, em cada grupo social. A estrutura conceptual dos perdedores e ganhadores da globalização uniformiza demasiado a explicação, ignorando a realidade específica de cada país, e, portanto, perde rigor analítico e pode inclusive levar-nos a tirar conclusões precipitadas que não são verdadeiras. Especialmente se for utilizada como uma panaceia teórica, que desleixa a nossa busca de causas. Segundo, porque os argumentos económicos e migratórios tendem a ser excessivamente misturados na explicação teórica habitualmente dada. Normalmente são sempre os dois apontados simultaneamente como causas, quando, na verdade, é altamente improvável que não existam fronteiras concretas entre os dois, e que sejam sempre os dois igualmente importantes.
2. O
fenómeno Trump sem dúvida que activa uma clivagem etno-nacionalista no
eleitorado. Esta parte do fenómeno seria normalmente ligada, no argumento da
globalização, à questão da imigração. Qualquer coisa do género: a globalização
acelerou a imigração e a white working
class, que vê a percentagem de “estranhos” no seu país a aumentar e a fazer
parte da economia e do emprego, enquanto ela própria vê a sua condição
económica a deteriorar-se, quer mandar os imigrantes “embora” numa esperança de
recuperar uma posição económica de outrora (muitas vezes apenas fantasiada).
Problema: o fenómeno Trump é principalmente contra os afro-americanos e os
hispânicos (não sendo, por exemplo, contra os asiáticos, que também crescem na
sociedade americana, e se tornam uma classe particularmente afluente na segunda
geração, com taxas de sucesso académico muito acima da média). Ora, o
crescimento da população afro-americana não está relacionado com a imigração
nem com a aceleração da globalização. Está relacionado com tendências
demográficas internas do país, e a sua ascensão na sociedade deve-se a um
desenvolvimento político interno, que ocorre desde o movimento dos direitos
civis. Quanto aos hispânicos, também não estou certa de que o aumento da
imigração proveniente do México e do Caribe na segunda metade do século XX (de
resto já em declínio) se deva à aceleração da globalização. Na verdade, e
ironicamente, é o movimento migratório mais “próximo” da história dos EUA. Os
EUA são um país feito de imigrantes e esta sempre existiu nos EUA,
independentemente do estádio da globalização. Desde o início do século XX, já
houve imigração em massa de alemães, italianos, escandinavos, japoneses, judeus
da europa central, mexicanos, caribenhos e asiáticos em geral. A imigração de
mexicanos é até, em teoria, a menos relacionada com a globalização: a migração
de povos para países vizinhos com melhores condições económicas é um fenómeno
anterior à hiperglobalização. Assim, a clivagem etno-nacionalista em Trump,
especificamente contra afro-americanos e hispânicos, não é tanto um produto da
globalização, mas sim um fenómeno específico da questão racial e migratória norte-americana.
Jorge Almeida Fernandes, no Público de Sábado passado (15.10.2016), lembra-nos a
longa história da última destas questões: “Na América, o populismo tem fundas raízes desde o fim do século XIX e que
se reavivaram nos anos 1930. Em termos de política anti-imigração é bom lembrar
o slogan “The Chinese must go”, lançado pelo populista Denis Kearney em
1878 e que deu lugar, em 1882, à primeira lei da História americana contra uma
nacionalidade específica — o Chinese Exclusion Act. Nos anos 1920, o Congresso
impôs severas quotas à imigração da Europa meridional e Oriental (e só
revogadas em 1965). Também a palavra de ordem “America First” tem uma
história que remonta aos anos 1930. O leitor pode ler um resumo no ensaio
acabado de publicar na Foreign Affairs pelo historiador Michael Kazin” Quanto
à outra questão, a questão racial, dispensa qualquer comentário sobre a sua
complexidade e importância no seio da sociedade norte-americana. É a história
dos Estados Unidos, e a sua questão identitária fundamental (“O que é ser
Americano?”), mais do que a globalização como fenómeno recente, que enquadra e
nos ajuda a perceber o que se está a passar no campo das clivagens
identitárias.
3. Arrumada a questão da identidade como reacção à hiperglobalização, vamos então ao populismo económico. Mais uma vez, vamos ao argumento habitualmente invocado pelos proponentes da teoria da globalização como causa do populismo: a integração económica internacional crescente leva a que algumas indústrias, particularmente as que empregam mão-de-obra pouco qualificada, se deslocalizem para outros países, ou em alternativa que se tornem obsoletas. Aqueles que estavam empregados nestas indústrias perdem com a globalização, apesar de esta poder ter um efeito final positivo. O conceito de perdedores e ganhadores da globalização parece algo recente, mas, na verdade, não passa de uma adaptação da ideia de destruição criativa de Schumpeter (que por sua vez a foi buscar a Marx) à era do capitalismo global. Note-se, portanto, desde logo a primeira nuance que o argumento omite: sempre houve perdedores do progresso económico, independentemente de vivermos numa era hiperglobalizada ou não. Só este facto deveria chamar a nossa atenção: se sempre houve perdedores do progresso, se como vimos em cima a questão etno-nacionalista e o populismo não são coisas novas, então talvez isso signifique que o populismo é um perigo das democracias capitalistas, em sentido lato. E, nesse contexto, a hiperglobalização será, no máximo, a causa conjuntural de uma nova encarnação de um perigo antigo e estrutural. Mas será mesmo?
4. É
quase impossível negar que a hiperglobalização terá algum efeito na política,
porque a primeira é uma característica essencial da economia actual e a
economia tem sempre efeitos na política.
No entanto, sou mais céptica em avançar com a ideia de que, a nível
micro, são os perdedores da globalização que votam em políticos populistas e
que formam a base de movimentos populistas, por
causa das consequências da globalização na sua vida. Normalmente, são
apontados alguns factos em defesa desta tese: no caso de Trump, que o seu
eleitorado é maioritariamente constituído ou atrai desproporcionalmente os
elementos da white working class.
Depois são dados alguns outros dados, tais como quem lidera as preferências dos
eleitores brancos sem educação universitária. Repare-se, no entanto, nas camadas
deste argumento: ele refere que os perdedores da globalização são da white working class, que os votantes de
Trump são desproporcionalmente da white
working class e, com base nestes dois dados (independentes) a nível macro
tenta inferir uma relação de causalidade a nível micro: que os votantes da white working class que de facto votam
Trump são os perdedores da globalização e que a razão do seu voto foi serem
perdedores da globalização. A falácia ecológica é evidente. Fui, então,
procurar os melhores dados sobre os eleitores de Trump, a nível individual.
Parece-me que são estes: um estudo da Gallup, feito a partir de mais de 100 000
observações individuais, ao longo de um período de quase 1 ano (de Julho de
2015 a Agosto de 2016), em que se tenta aferir a probabilidade de um indivíduo
ter uma opinião favorável a Trump, tendo em conta uma série de factores
geográficos e socioeconómicos. Os resultados? Homens brancos menos educados em blue-collar jobs tendem a ver Trump mais
favoravelmente. No entanto, mesmo restringindo a análise a homens brancos
não-hispânicos em idade activa, aqueles que vêem Trump favoralmente têm um
rendimento ligeiramente superior
àqueles que vêem Trump negativamente, uma vez ajustado para o poder de compra.
Mais, o apoio a Trump cai em zonas
mais expostas ao comércio internacional e à imigração, dando uma machadada na
hipótese dos perdedores da globalização. Aquilo que mais distingue os apoiantes
de Trump face a todos os outros (incluindo outros republicanos) são,
essencialmente, duas coisas. Primeiro, viver em bairros racialmente isolados
(isto é, desproporcionalmente brancos). Segundo, viver em zonas onde medidas
menos directas de bem-estar económico (o rendimento e o emprego são medidas
directas) são tendencialmente piores, tais como: maior mortalidade de brancos
de meia-idade (pior saúde), menor mobilidade intergeracional, maior dependência
da Segurança Social, maiores rácios hipoteca/rendimento (isto é, áreas mais
endividadas), e menor dependência de rendimento do capital (e mais do
trabalho). Ou seja, segundo as medidas tradicionais de rendimento e emprego, os
apoiantes de Trump são até afluentes, no entanto vivem em zonas piores e mais
brancas.
5. Como
interpretar estes resultados a nível teórico? Theda Skocpol, a decana das
cientistas sociais americanas, passou vários anos no terreno, a conduzir
entrevistas a membros da base do Tea Party, a frequentar as suas reuniões
privadas e as suas manifestações públicas, e a estudar também as elites do
Partido Republicano, tais como a rede de organizações e think-thanks financiada por bilionários como os irmãos Koch.
Publicou, em 2013, um livro chamado The Tea Party and the Remaking of Republican Conservatism. Aquilo que ela
conclui é isto: a base do Tea Party é maioritariamente constituída por brancos
mais velhos da classe-média que aprovam programas estatais como a
Segurança Social, o Medicare e o apoio a veteranos. A sua oposição discursiva
ao famoso “big government” é, na
verdade, uma oposição a que estes programas beneficiem pessoas que eles não
consideram real Americans: imigrantes,
afro-americanos e hispânicos, e os mais jovens em geral. Isto é, eles sentem
que as suas contribuições fiscais de uma vida estão a ir para outros grupos
sociais, em vez de estarem a ir para Americanos verdadeiros como eles. Esta
oposição cresceu durante a Administração Obama, cujo plano de reacção à crise
de 2008 incluiu programas sociais que, mais uma vez, estas pessoas viram como
beneficiando desproporcionalmente Americanos não verdadeiros. Finalmente, claro
que o simbolismo de uma presidência afro-americana como representativa de uma
era pós-racial (uma ilusão), só veio adicionar revolta por parte destes
Americanos. Simultaneamente a tudo isto, as elites conservadoras (também
descontentes com a administração Obama) utilizaram esta base, que
discursivamente é contra o big government,
para avançar uma agenda ultra-liberal a favor da desregulação, do mercado livre
e do corte de impostos aos milionários. Note-se que a ideologia das elites não
é a mesma que a ideologia das bases. As bases querem programas sociais para “real Americans”, as elites não querem programas
sociais de todo. No entanto, as elites aproveitaram-se do discurso e
descontentamento das bases. Simultaneamente, foram activando, ao longo dos
anos, a clivagem etno-nacionalista e racial, para mobilizar o eleitorado e
avançar a sua agenda. Este estudo foi realizado antes do fenómeno Trump
aparecer, mas as conclusões de Skocpol são surpreendentemente consonantes com
os dados da Gallup, e com o discurso de Trump que ouvimos. Trump é, por um
lado, um populista económico, um proteccionista que promete proteger os
empregos americanos, e não tem um discurso anti-programas sociais (ao contrário
de outros republicanos). Por outro lado, não esconde que quer cortar maciçamente
os impostos aos mais ricos, utilizando o discurso do “big government” e da carga fiscal demasiado elevada. Isto é uma combinação
económica algo estranha e nova, pelo menos nos EUA. Finalmente, Trump combina
este programa económico com um discurso etno-nacionalista, sugerindo que o seu
proteccionismo será, essencialmente, para proteger os tais real Americans.
Em suma,
a globalização não parece ser, pelo menos directamente, o factor que está na
base do ressurgimento do populismo nos Estados Unidos. Este populismo surge num
clima de disputas raciais e distributivas domésticas. A ligação com a
globalização poderá entrar de forma indirecta, na medida em que tudo isto foi
potenciado por uma época de estagnação secular dessa globalização, e pelo
choque global da crise económica e financeira de 2008.
O quadro
conceptual de perdedores e ganhadores da globalização seduz-nos pelo seu nível
de abstracção. Porque gostamos sempre de explicações gerais, de fazer teoria e
não apenas de ficarmos presos à colecção e reprodução de factos. No entanto, a
subida da escada da abstracção só pode ser feita através da perda de detalhe, e
nunca da perda de precisão.
Subscrevo esta análise, o seu resultado e o método, começando por referir que, em comentário a um artigo anterior, sugeri/pedi à mesma autora que desse uma vista sobre a evolução dos rendimentos dos "brancos" e sobre a mortalidade dos "não hispânicos", porque a minha implicitação era que, essas duas variáveis explicavam o impacto de "Trump". Enganei-me. São importantes sem serem explicativas.
ResponderEliminarP.S.: Isto é muito mais Economia Comportamental que o que parece e quem sabe se a Sandra Maximiano e outros mais dedicados a esta área não quererão esclarecer-nos...
EliminarA característica "autoritária" e a "moralidade" a que se referem os dois artigos seguintes, são as definidas por JONATHAN HAIDT (2000) para fins de comparação entre culturas - autoritários muito obedientes, que é o que são os apoiantes de Trump. Foi por isso que os americanos elegeram Obama e não outro. É paradoxal? Nem por isso...
THE ONE WEIRD TRAIT THAT PREDICTS WHETHER YOU’RE A TRUMP SUPPORTER
By Matthew MacWilliams January 17, 2016
http://www.politico.com/magazine/story/2016/01/donald-trump-2016-authoritarian-213533#ixzz4NHAoZzCg
And it’s not gender, age, income, race or religion: “I’ve found a single statistically significant variable predicts whether a voter supports Trump—and it’s not race, income or education levels: It’s AUTHORITARIANISM. (…) POLITICAL POLLSTERS HAVE MISSED THIS KEY COMPONENT OF TRUMP’S SUPPORT BECAUSE THEY SIMPLY DON’T INCLUDE QUESTIONS ABOUT AUTHORITARIANISM IN THEIR POLLS. (…)”
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DONALD TRUMP SUPPORTERS THINK ABOUT MORALITY DIFFERENTLY THAN OTHER VOTERS. HERE’S HOW.
by Emily Ekins and JONATHAN HAIDT February 5, 2016
http://www.vox.com/2016/2/5/10918164/donald-trump-morality