Depois de mais de seis décadas a usar um cravo
branco na lapela, o senhor Almeida resolveu sair de casa sem flor.
Quem o viu
passar a caminho do café estranhou qualquer coisa no seu aspecto, não sabia bem
o quê. Mas houve aqueles que logo notaram a lapela desadornada e hesitaram dois
segundos antes do cumprimento habitual. Uma vez que todos os que o conheciam o
tinham sempre visto de cravo, nunca ninguém se perguntou por que é que o senhor
Almeida teimava em usar um adereço tão antiquado. Um lenço com a ponta a sair
do bolso do casaco, ainda vá. Um lacinho em vez de uma gravata era, até, sinal
de intelecto, de dedicação às ciências, quando acompanhado de cabelos revoltos,
ou à crítica literária, no caso de ser usado como remate final de uma
indumentária centrada num cachimbo apagado. Ou um lenço ao pescoço, para um ar
de prosperidade à moda antiga, ia-se vendo. Um cachecol para os mais jovens, de
corpo ou espírito. Um emblema do clube, para os mais místicos. Os solidários é
normal ostentarem o autocolante do donativo, não fossem pedir-lho outra vez. Diz-se
por aí que há quem o guarde de um ano para o outro e, ouvi um dia destes na
farmácia, é já célebre um indivíduo que usa o mesmo autocolante desde finais
dos anos setenta. Do século passado. O vinte. Fazem-se apostas, ao que parece.
Há quem aposte que a cola vai ser a primeira coisa a dar de si. Outros entendem
que é o símbolo da santa casa, já muito gasto, que vai finalmente desaparecer.
Outros ainda acham que um dia alguém há-de reparar que o boneco que está no
autocolante é completamente diferente do boneco que está na lata do peditório.
Não tens medo das senhoras voluntárias, perguntam-lhe. Que lhes dê uma fúria e
te desmascarem mesmo ali, aos gritos de intrujão, que feio é aproveitar-se dos
pobrezinhos para passar por boa pessoa. Mas ele não se incomoda. O autocolante
já lhe poupou o suficiente para comprar um ecrã gigante. Isto de ser generoso é
só para quem pode, os outros têm que se fazer à vida, e os da santa casa são
todos uns malandros, a viver à custa de quem trabalha. Ainda ninguém ganhou a aposta
e já se fala em milagre. É que um cuspo que não amolece o papel, ao mesmo tempo
que continua a humedecer a cola vai para mais de quarenta anos, é um prodígio.
Ou então é o autocolante, que é de muito boa qualidade. Dantes as coisas
faziam-se para durar, diz o farmacêutico, que gosta de impressionar os
fregueses com expressões como "obsolescência programada" ou
"unidade curricular". Que bonito é ter estudos, pensam as senhoras
mais velhas. O meu rapaz também já sabe dizer coisas assim, pensam as senhoras
menos velhas que abriram no banco uma conta especial para pagar o traje
académico dos rebentos. O senhor Almeida destroçara o cravo branco do costume e
deixara as pétalas maceradas sobre uma página do jornal onde se lia morreu
ontem Sôr Miserabilis, a última freira na península que ainda guardava voto de
silêncio.
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