No passado dia 13 de
Outubro, a Academia Nobel surpreendeu uma boa parte do mundo ao atribuir o
galardão máximo da Literatura a Robert Allen Zimmerman, mais conhecido por Bob
Dylan. A explicação do Comité sueco foi, como é habitual, lacónica: "por ter criado novas formas de
expressão poética no âmbito da grande tradição musical norte-americana”.
Não
se trata, por certo, do primeiro poeta a ser distinguido, mas alguém mais
conhecido como músico e que tem uma vida rica em desastres pessoais, de
conversão ao Cristianismo e que tem marcado sucessivas gerações de apaixonados
pela música. Logo se ouviram “velhos do Restelo” a caricaturar a honra,
alvitrando que a Academia estaria a vulgarizar o Nobel. Discordo desta visão,
embora não esteja absolutamente deliciado com a escolha. Creio, na verdade, que
os membros do júri mostraram uma ímpar capacidade de ler o mundo e de
compreender que prémios como este devem estar onde as pessoas se encontram,
junto dos sentimentos universais que, não apenas escritos ou lidos, são
amplificados por uma voz inconfundível.
Só
quem nunca prestou a devida atenção às letras das músicas de Dylan pode ficar
atónito com o prémio. Mesmo sem um trabalho exaustivo que cabe aos críticos
literários, julgo não errar ao crismar Bob o “poeta das coisas comuns”, no
sentido mais expedito e belo da expressão. Canta o amor, “essa palavra de
quatro letras” (Love is Just a Four-Letter-Word, 1967), sem um tom
lamechas, necessariamente perscrutando as suas várias dimensões. Mas Dylan é,
sobretudo, um homem que vivenciou boa parte do século transacto com
distanciamento crítico. Trouxe, como outros, para a poética e para a música, as
duas Grandes Guerras (Masters of War, 1963), o capitalismo sem
escrúpulos, a criminalidade (The Lonesome Death of Hattie Carroll,
1964), o poder de Wall Street (“Os homens de negócios bebem o meu vinho”, in: All
Along the Watchtower, 1968). Mas também a crítica ao imobilismo, o
incentivo a uma sociedade civil organizada e a funcionar como efectivo poder
balanceador dos “oficiais” (“A maior parte do tempo/ Nada mudaria ainda que
pudesse”, in: Most of the Time, 1989). É um feroz adepto de uma justiça
independente de classes, o que nos EUA e em todo o mundo é um ideário sempre
incompleto. As iniquidades, a fome, a desigualdade baseada na raça, no género
(veja-se a referência à simplificação estereotipada e à classificação sacana em
All I Really Want to Do, 1964), não lhe são indiferentes: “Posso sorrir
na face da humanidade” (idem). Apetece repeti-lo: “Quantos anos têm as
pessoas de existir/ Até lhes ser permitido serem livres?”.
O
poeta é, ainda, um cantador do divino (de entre tantos, Changing the Guard,
1978: “Onde o bom pastor se lamenta/ Homens e mulheres desesperados
dividem-se”), um crente na paz (T.V. Talkin’ Show, 1990). A sua ligação
ao Cristianismo demonstra-se por um bom conhecimento bíblico: não há nenhum
cabelo da tua cabeça que caia sem que Deus o saiba e autorize (Every Grain
of Sand, 1981), a traição de Judas, a destruição do Templo, a ira do
Senhor. Fá-lo sem qualquer mácula extremista, com um profundo humanismo. O
poema Watered Down Love, 1981, é uma espécie de versão aggiornata
de uma das mais belas passagens do Livro cristão: a ágape grega de S.
Paulo aos Coríntios. Dylan revela o rosto humano do divino, um Deus compassivo
e misericordioso, de bondade e clemente. Longe de tantas outras visões muito
típicas no seu país de origem. Quem aborda estes temas não pode passar ao lado
da dimensão temporal: “Se amanhã não fosse um tempo tão distante,/ Então a
solidão nada significaria para ti” (Tomorrow is a Long Time, 1963).
Interessante ainda é a personificação de um Deus que acompanha o homem nas
maiores carnificinas como os conflitos bélicos declarados ou a Guerra Fria: em
todos, Ele “está ao nosso lado” (With God on Our Side, 1963).
Da
política traça um retrato fiel: arte de sobrevivência, de imposição pela
posição ocupada, de troca de favores, mas também, de quando em vez, de
nobilíssimo exercício do poder.
Por
certo Bod Dylan não seria o escritor que mais mereceria receber o Nobel, certo
que estes “merecimentos” são sempre muito relativos. Um pouco por todo o mundo,
existem pessoas que escrevem com mais profundidade e riqueza, com um verdadeiro
sobressalto intersticial. Tal não retira o mérito do actual Prémio,
simplesmente obriga-nos, como sempre deve acontecer, a colocá-lo em
perspectiva. Quantos escritores já não partiram sem nenhum reconhecimento da
Academia sueca e, nem por isso, deixam de marcar, de forma indelével, o destino
dos povos e aquele traço civilizacional que nos vai distinguindo de outros
seres? Quem em Portugal não encontraria outros candidatos tão bem ou melhor
posicionados, no mundo da Lusofilia e, claro está, no espaço
linguístico-cultural de outros Estados?
Relativizemos
a importância da medalha e das honras de Alfred Nobel. Todos sabemos que
galardões como este têm sempre um significado político-social e económico, mas
essa é a natureza última da natureza humana e, em especial, dos nossos tempos. As
vendas costumam disparar, assim como as traduções, a cerimónia tem o seu quê de
interessante e os discursos proferidos oscilam entre o enfadonho e inspirador.
Neste último grupo, perdoe-se o orgulho nacional, está sem dúvida o do nosso
Saramago.
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