É na primavera que floresce, os botões abrem-se um a
um como papel de rebuçado.
Nisto, é como todas as outras plantas, ou todas as
outras plantas que florescem na primavera. Olhamos pela janela do carro para
campos amarelos e se a víssemos vê-la-íamos como vemos as flores nos campos
amarelos, desta vez não como papel de rebuçado mas como um tapete, uma colcha,
uma toalha. Também como todas as outras plantas tem uma raiz. Esta raiz não é
enigmática, como a raiz da mandrágora. Se escavarmos como escavam os cães
treinados não vamos encontrar homúnculos debaixo do chão, não cairemos mortos
pelos gritos dos pequenos homens e mulheres que arrancamos pelos cabelos. Nem
precisaremos dos livros que ensinam a pô-los a bom uso, a nosso uso, seja.
Haveria que desenterrar a raiz numa segunda-feira, voltar a enterrá-la à noite
numa campa de um cemitério de aldeia, regá-la durante trinta dias com leite de
vaca onde se afogaram três morcegos. Se, passados estes dias e estes cuidados,
mais uma vez a desenterrarmos e enrolarmos na mortalha do morto da campa do
cemitério de aldeia, então, é fatal, é garantido, está feito. Um gesto fora do
lugar, um segundo a mais ou a menos, cinco morcegos em vez de três, e tudo terá
sido em vão. Um dia mais cedo, uma semana mais tarde, um morcego morto de susto
antes de se afogar no leite, e o trabalho de nada terá valido. A magia é
exacta, é rigorosa, não se esqueça disto quem dela esperar alguma coisa. Não se
acerta à primeira, nem seguindo a receita de um livro carcomido. A prática é
necessária, não por acaso lhe chamam A Prática. Uma ciência e uma arte. Litros
de leite de vaca, gerações de trios de morcegos, armazéns de mortalhas e todos
os cemitérios de aldeia registados no mapa terão que ser gastos antes que possa
dizer-se, faça-se a minha vontade. Se quisermos que seja a nossa vontade a
fazer-se e não a nossa incompetência. Leva muito tempo, curva muito as costas,
encrespa muito os cabelos, apodrece muito os dentes, entorta muito os olhos.
Não é para os fracos, para os volúveis. Esta planta que não é como a mandrágora
também tem tronco e folhas e nisto é como a mandrágora e como todas as outras
plantas. De tal modo é como as outras plantas, incluindo a mandrágora se desta
excluirmos a raiz, que não é fácil dizer em que se distingue. Não tão difícil como
dominar a ciência e a arte da magia. Mas difícil ainda assim. Digamos que o que
a distingue é o que nela floresce na primavera, dromedários de cílios longos e
negros como pincéis de mandarins.
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