Há quem ache que há palavras demasiado perigosas para
poderem ter rédea solta. Daqui decorre o seguinte: a bem da sociedade, é melhor
silenciar e punir quem recorre a uma linguagem incendiária. Embora nunca o
digam, os “iluminados”, aparentemente os únicos imunes a palavras incendiárias,
têm a pior das impressões dos cidadãos que alegadamente querem proteger. Os
cidadãos não são vistos e tratados como adultos, mas sim como umas criançolas.
Incapazes de pensar pela própria cabeça, impressionáveis e inflamáveis por
determinados conteúdos, imbecis, acéfalos, ignorantes, sem discernimento,
manipuláveis pelo primeiro demagogo de feira, há que protegê-los de certas
palavras como se faz às criancinhas. Os iluminados atribuem um poder mágico às
palavras. Pelos vistos, basta aparecer alguém com um discurso de ódio ou uma linguagem
incendiária para de imediato as hordas se lançarem numa espiral de violência.
Claramente, vivemos numa época em que não abunda a fé na humanidade. Daí o
regresso em força do discurso sobre as massas ignorantes, influenciáveis e
acéfalas, agora à solta pelas redes sociais, como não se cansam de lamentar
alguns respeitáveis comentadores.
Vejamos outro problema. A seguir à morte dos cartoonistas do
Charlie Hebdo, o Papa fez um comentário absolutamente lamentável. Segundo ele,
não se brinca com a fé e é normal dar socos a quem ofende a nossa mãe. No
fundo, estava a dizer que os cartoonistas franceses estavam mesmo a pedi-las e,
por isso, é normal que alguns muçulmanos se tenham revoltado com o mau gosto
(indiscutível) e as provocações do jornal. Esta ideia atravessou muitos dos
discursos pós-atentado. E eu pergunto: até que ponto esta atitude contra a
linguagem incendiária e provocatória não cauciona o terrorismo islâmico? Eu
explico. Ouvindo discursos como o do Papa, muitos terroristas podem pensar que a
principal diferença entre eles e os ocidentais é a coragem em sujar as mãos com
sangue – eles sujam-nas se for preciso, enquanto os cobardolas dos ocidentais não
são capazes de passar à acção e literalmente matar o mal pela raiz. Bem, mas
não era disto que queria falar quando comecei a escrever este post. O meu ponto
era outro.
Nos EUA, lembra Mick Hume no seu “Direito a ofender”, a
maior autoridade citada no argumento contra a liberdade irrestrita de expressão
é o juiz Oliver Wendell Holmes, autor de uma sentença unânime do Supremo
Tribunal em 1919. O que diz, afinal, de especial essa sentença? Passo a
citar: “Nem a protecção mais rigorosa da liberdade de expressão protegeria um
homem que gritasse falsamente «fogo!» num teatro e causasse pânico.” Ora esta
sentença é muitas vezes invocada para impor limites a todas as palavras
consideradas incendiárias, as quais, por conseguinte, não estariam protegidas
nem mesmo pela Primeira Emenda dos EUA. Na verdade, 50 anos mais tarde, em
1969, o Supremo Tribunal anularia a sentença de 1919, num caso que envolvia um
líder do Ku Klux Klan chamado Clarence Brandenburg.
Clarence Bradenburg discursou num comício onde se falou de
vingança contra “pretos”, “judeus” e quem os apoiasse. À luz da sentença de
1919, foi condenado a 10 anos de prisão por um tribunal de Ohio. Os juízes do
Supremo revogaram essa condenação e estreitaram os critérios passíveis de
restringir ou punir qualquer discurso. Doravante, para que os direitos da
Primeira Emenda fossem restringidos, o tribunal teria de demonstrar que as palavras
poderiam provocar danos graves e que havia uma perspectiva imediata de que isso
acontecesse. Exprimir uma opinião provocadora ou considerada incendiária já não
poderia ser considerado crime.
Penso que qualquer tentativa de restringir a liberdade de
expressão deve passar, no mínimo, o teste definido pelos juízes do Supremo dos
EUA em 1969: mostrar que as palavras tencionam ou podem incitar uma “acção
ilegal iminente”. Além disso, como sublinha Mick Hume, deve-se sempre ter em
conta o contexto em que as palavras são proferidas. Uma coisa é dizer que “os judeus
não fazem cá falta nenhuma”, outra é “vamos dar cabo do cabrão daquele judeu ali
à frente”. O último exemplo parece ser uma infracção criminal, o primeiro é uma mera
opinião ofensiva e, por isso, não deve ser criminalizada. Infelizmente, não é
neste sentido que vai a legislação a nível europeu, como mostram, por exemplo,
as leis relativas ao discurso de ódio impostas pela União Europeia a toda a
Europa em 2008. Não é com este tipo de leis se que se traz paz social e ordem pública à Europa. Pelo contrário. Podem ajudar a inflamar as tensões ao sancionarem oficialmente a ideia de que o discurso ofensivo é um crime e que ser ofendido é razão para tomar medidas censórias. No fundo, como diz Mich Hume: estas leis "dão luz verde a qualquer pessoa que guarde rancor e queira ilegalizar ou suprimir opiniões que considere perturbadoras."
Sugestão - comparar essa posição com a tal do Popper; até podem ser duas maneiras de dizer a mesma coisa, mas não me parece (sobretudo na parte do "iminente").
ResponderEliminarOutro ponto - a dicotomia entre “os judeus não fazem cá falta nenhuma” (opinião puramente descritiva sem apelo à ação) e “vamos dar cabo do cabrão daquele judeu ali à frente” (apelo a uma ação concreta) deixa de lado outra situação (ou uma porção de outras), nomeadamente a categoria "apelo genérico a uma ação num futuro indeterminado" - onde fica, p.ex., "há de chegar o dia em que vamos correr com os judeus da nossa terra", ou "temos que nos preparar para o dia da guerra santa contra os sionistas e cruzados, inclusive nas suas terras" ou "Os assassinos da Comuna de Paris e de Budapeste ensinaram-nos que a repressão é sempre impiedosa e que a paz dos cemitérios é a única promessa feita pelas forças da ordem estatal. Chegados a uma situação de confronto em que a repressão não poupará ninguém, não poupemos nenhum desses cobardes que aguardam a nossa derrota para se tornarem carrascos. Incendiemos os bairros residenciais, liquidemos os reféns, arruinemos a economia" (citação de um livro que tenho em casa).
São boas perguntas e muitas vezes é essa a parte mais difícil e mais descurada.
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