Por estes dias, uma amiga minha comentou que estava a resistir à
tentação de fazer piadinhas sobre a aparência física do Trump.
Sugeri-lhe que não o faça, lembrei o velho ditado "não lutes com um
porco: vocês os dois vão acabar sujos de lama e o porco vai adorar".
Sou
óptima a dar conselhos aos outros... Mas, pelo meu lado, se penso na
cerimónia de tomada de posse do Trump que vai ter lugar amanhã,
deparo-me com um terrível impulso de Schadenfreude. Rebbeca Ferguson é
convidada para cantar na cerimónia de tomada de posse de Trump, e
responde que só o fará se a canção escolhida for Strange Fruit,
hihihihi, embrulha essa, Trump. A única estrela que vai cantar a solo é
Jackie Evancho, uma miúda de 16 anos que se revelou no "America's got
talent" a cantar "o mio babino caro". Hihihi, foi o melhor que se
arranjou para cantar o hino nacional à frente do Trump, hihihi, uma
miúda de 16 anos. Para o Obama, foi a Aretha Franklin. Hihihi. E o
baile, hehehehe, quero ver quem arranjam para cantar no baile. Quero ver
se quem canta também se comove profundamente como a Beyoncé (quem não se lembra?),
imagino o casal Trump a dançar na terrível exposição daquele palco: nos
antípodas da graça, do à-vontade, da harmonia, da sensualidade e da
alegria do casal Obama. Quero ver, hihihihi. Por falar em casal Trump: a
Melania. Hihihihi, a Melania, coitadinha da Melania, hihihihi.
Portanto,
é este o gelo fino sobre o qual corro o risco de avançar: pensar mal da
Melania por causa do marido dela.
Desclassificar a Jackie Evancho (cuja alegria e naturalidade em tempos
me enterneceram) só porque ela vai cantar o hino nacional na
cerimónia de tomada de posse. Sujar o debate das ideias políticas com
incursões na área do aspecto físico de uma pessoa e da sua vida privada.
"O
Trump liberta o filho da puta que há em ti", dizia há tempos o Lutz Brückelmann, falando do contributo de Trump para a aceitação e até o elogio de
discursos públicos à margem da decência e da humanidade, agora vistos
como sinal de corajosa frontalidade. Mas a acção destruidora do fenómeno
Trump vai mais longe: como descubro também em mim, faz vir à tona os
piores instintos de quem se queria pessoa civilizada. Isto está a correr
muito mal. Tenho de meter os travões a
fundo: pensar, escrutinar os impulsos, pensar de novo.
Tempos
difíceis,
estes, quando me sinto desapontada comigo própria, e suspeito que
aqueles com quem mais me identifico ideologicamente também não estarão
muito seguros dos seus valores.
Por exemplo: será que a
ausência de estrelas do mundo do espectáculo na tomada de posse do
Trump é realmente sinal de protesto de cada uma delas? Ou há algumas que
só não foram porque temeram ser marginalizadas ou perseguidas pela
máquina da qual dependem? Será que está em curso uma espécie de controlo
de "actividades antiamericanas" entre pares? Outra questão preocupante:
a independência do nosso pensar. Temo o dia em que o Trump diga algo
sensato, e muitos desatem a contradizer apenas por reflexo condicionado.
Corremos
o risco de nos afastarmos dos nossos melhores valores de
tolerância, generosidade, respeito pela liberdade alheia. Estamos cada
vez mais separados uns dos outros - "deploráveis", uns; "elitistas
arrogantes", os outros.
O mais perigoso eixo do mal é
esse que marca a distância intransponível entre nós e os outros - e é
ele o mais eficaz vector de destruição da nossa sociedade. Por muito
antagonizados que estejamos, vamos ter de arranjar maneira de nos
reencontrarmos e entendermos. A nossa democracia tem de ser um lugar de
coexistência pacífica na diferença. E não se trata de aprender a
indiferença e o cinismo, não se trata de aceitar passivamente. Trata-se
do trabalho difícil e exigente de encontrar as palavras certas para o
diálogo.
A Jackie Evancho, a tal miúda de 16 anos que
amanhã vai cantar o hino nacional americano, pode tornar-se um símbolo
desse desafio. Ela - a única artista que aceitou actuar a solo na tomada
de posse do Trump - tem
uma irmã mais velha que nasceu com corpo de rapaz, e se empenha na
defesa da dignidade dos transexuais. Na mesma família, uma pessoa
colabora com Trump e a outra é perseguida por muitos dos eleitores deste
presidente. Se eles conseguem o amor, o entendimento e o respeito, nós também havemos de conseguir.
Helena:
ResponderEliminarDisse: «Corremos o risco de nos afastarmos dos nossos melhores valores de tolerância, generosidade, respeito pela liberdade alheia.»
Eu penso que já nos afastámos há algum tempo desses valores, precisamente no viver social a partir da generalização do uso da Internet, que democratizou o acesso à informação mas também o acesso à palavra.
Isso aparentemente seria bom, mas na prática tem-se revelado em muitos aspectos funesto, porque ocorre ao mesmo tempo em que, muito do que o fazem, fazem-no anonimamente e com um estatuto inadequado à sua condição.
E sem controlo social todos sabemos que o ser humano deita cá para fora o pior do que cada um é.
Umberto Eco, a propósito da democratização do uso da palavra pela Internet dizia: «As redes sociais deram o direito à palavra a uma legião de imbecis que, antes destas plataformas, apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade. Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel. Antes das redes sociais, a televisão já havia colocado o idiota da aldeia num patamar em que este se sentia superior, mas o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a detentor da verdade.»
O que nós ainda não tínhamos tido era esta nova e dolorosa realidade instituída nos mais elevado cargo institucional, como é a presidência dos EUA.
Tambem fico assim quando o Sporting perde . . .
ResponderEliminarTambém tenho percebido que há gente que trata questões políticas com a mesma leveza com que falam de futebol.
EliminarQuando se morre pelo futebol, o valor das questões politicas pode ser igual ao valor das questões futebolísticas.
EliminarO ideal mesmo é considerar que não somos donos da verdade e cada um pode decidir quais os problemas que lhe são mais importantes, deixando as criticas fáceis na gaveta.