Em 1831, numa missão do ministério da justiça francês, o
magistrado Alexis de Tocqueville e o seu amigo Gustave de Beaumont permaneceram
nos EUA cerca de nove meses com o objectivo de estudar o sistema prisional
americano. No início de janeiro de 1832 regressaram a França. Dois anos depois, em 1834, Tocqueville, com 29 anos, publicou a primeira parte Da democracia na América. O livro
tornou-se um best-seller e o autor famoso em França e no estrangeiro –
principalmente na Inglaterra, uma espécie de segunda pátria do escritor.
Durante anos, Tocqueville foi membro do parlamento da monarquia orleanista e
Secretário de Assuntos Estrangeiros, por um curto período, na Segunda República. Em 15 de Dezembro de 1850, numa carta ao seu amigo Loius de Kergorlay,
enviada de Sorrente, confessa que “valho mais no pensamento que na acção”. Se
alguma coisa permanecer de si neste mundo será mais o “rasto do que escrevi do
que a lembrança do que fiz”. Via os anos dedicados à política activa como estéreis,
sob muitos ângulos. Ao mesmo tempo, sentia-se mais maduro e experiente,
iluminado por “luzes mais verídicas sobre as coisas humanas e uma noção mais
prática dos detalhes”. Agora, aos 45 anos, no declive da vida, Tocqueville
queria escrever outra obra. Mas qual o assunto a escolher? Era essa a sua
dúvida na altura. Tinha de escolher algo que o animasse e fizesse sair de si
tudo aquilo que pudesse dar.
Não valeria a pena navegar contra a corrente do seu
espírito, porque se não encontrasse um prazer apaixonado cairia “bem abaixo da
mediocridade”. Teria de ser também um assunto que interessasse ao público, ou
seja, um assunto contemporâneo que lhe permitisse “um julgamento livre de
nossas sociedades modernas e a previsão do seu futuro previsível.” Como é
sabido, a revolução de 1789 seria o tal assunto a que o autor se dedicaria nos
seis anos seguintes. Tocqueville achava-se melhor a julgar os factos do que a
narrá-los. Em 1856, publica O Antigo
regime e a Revolução. Trata-se de uma análise das causas da revolução
francesa – o autor morreu em 1859 e já não teve tempo de escrever uma segunda
parte em que se dedicaria a julgar a sociedade que saiu da revolução.
Como confessou noutra carta, Tocqueville na sua Da
Democracia na América não se limitou a ver a América, procurou lá a imagem da
democracia, “com as suas tendências e o seu carácter, preconceitos e paixões,
para apreender o que temos a temer ou esperar do seu progresso”. Uma das coisas
mais notáveis desta mente penetrante e original era a sua capacidade de pensar
em termos de tendências, identificando, no meio da floresta densa dos factos, o
essencial. A sua imagem de profeta tornou-se parte essencial da sua reputação. Na
verdade, a sua obra abunda de profecias mais ou menos cumpridas. Por exemplo, a
tirania da maioria e a sociedade de massas seriam dois resultados problemáticos
da democracia moderna. Ou a tendência para um grau cada vez mais elevado de
liberdade individual e independência levaria, como força de contraposição à
atomização da estrutura social, a uma cada vez maior centralização do poder
político. Em termos de capacidade de predição, Tocqueville põe Marx a um canto.
Uma das principais interrogações de Tocqueville em O Antigo
Regime e a Revolução é o que está novo e o que está morto na sociedade francesa
antes e depois da revolução. O autor identificou muitas continuidades e
similaridades. O Antigo Regime era fortemente centralizado; a Revolução
centraliza ainda mais a administração. O Antigo Regime destruiu grande parte do
feudalismo; a Revolução destruiu o que ainda sobrava. O Antigo Regime era
contra a liberdade; a Revolução era a favor, porém destruiu as suas
possibilidades. O objectivo central da Revolução era a igualdade; esse era
também o objectivo do Antigo regime a longo prazo.
O Antigo Regime esvaziou as liberdades locais e, com o
tempo, ocupou toda a administração local com os seus Intendentes. A nobreza
deixou de ser uma aristocracia e passou a ser, sobretudo, uma casta. Abandonou
a província e foi para Paris, numa primeira fase por incentivo do rei. Já não
dirigia nem guiava os habitantes, mas conservou e até estendeu muitos das suas
imunidades e vantagens pecuniárias (por exemplo, não pagava impostos).Resultado?
Os seus privilégios tornaram-se inexplicáveis e alvo de um ódio crescente. O
povo, afastado das assembleias populares, estava, no século XVIII, numa
situação mais dependente do poder do que nos séculos XIV e XV, apesar de muitos
camponeses se terem tornado proprietários. A burguesia era desprezada pela
nobreza e, por sua vez, desprezava o povo. Em suma, as classes estavam isoladas
e, paulatinamente, foi desaparecendo a ideia de bem-comum. Tocqueville fala
em “individualismo colectivo”, uma espécie de precursor do individualismo
pós-revolução.
A estratégia de dividir para reinar foi vantajosa durante bastante tempo para a monarquia. A desorganização e fragmentação da sociedade, com os seus fragmentos isolados e incapazes de agir em comum, deixavam o poder central à solta e liberto de incómodos. O problema é que ninguém levantaria também
um dedo para acudir numa hora de aflição. Com a Revolução, a realeza e as classes dirigentes perceberam tarde demais a situação em que se haviam colocado. Não existiam instituições livres e,
portanto, “nem classes políticas, nem corpos políticos vivos, nem partidos
organizados”. Esta ausência da política explica o papel determinante dos
intelectuais na revolução. Foram eles que encaminharam a opinião pública quando
ela renasceu. O “fanatismo da
razão” dos filósofos deriva do seu isolamento social. Ao contrário do que acontecia em Inglaterra, onde predominava uma “razão
prática”, os filósofos franceses não estavam misturados com os homens de acção
e as classes dirigentes. Apesar das diferenças entre eles, todos estes escritores
tinham em comum a crença de que se devia substituir “costumes complicados e
tradicionais” por regras elementares extraídas da razão. Entretanto, estes
princípios abstractos e modelos gerais baixaram e disseminaram-se pelo povo e o
povo executou a revolução. O carácter por vezes desumano da revolução está
ligado ao romper de todas as peias da tradição, costumes e religião, as quais
deviam ser derrubadas sem contemplações para edificar uma sociedade mais livre e justa. Em vez de substituir as más leis, criaram
um sistema completamente novo de governo. Entretanto, o caos e a anarquia levaram
o povo a procurar às apalpadelas o seu dirigente. E assim o governo absoluto
voltou mais forte do que nunca. A centralização do poder, adormecida num primeiro
momento, reergueu-se das ruínas, com uma força que nunca antes se tinha visto
em nenhum rei. Tudo o que antes a podia conter estava agora destruído. O dominador caiu, “mas tudo o que havia de mais substância na
sua obra ficou de pé.”
Estas razões ajudam a explicar a revolução francesa, mas
estas mesmas razões jamais teriam conseguido “explicar uma revolução como esta
alhures”, sublinha no final da sua obra Tocqueville, distanciando-se uma vez
mais dos modelos gerais e abstractos que criticava.
Bem, o texto já vai longo, mas só mais
um ponto. Tocqueville achava que muitas vezes não há uma correlação positiva
crescente entre opressão e revolução, acontecendo amiúde o contrário. Ou seja, o
povo frequentemente sofre sem uma queixa as leis mais coercivas, parecendo incapaz
de lhes resistir; porém, atira-se a elas com violência assim que a opressão
começa a decrescer. O infeliz Luís XVI foi vítima dessa tendência, ao falar
incessantemente durante o seu reinado na necessidade de fazer reformas,
influenciado em parte por administradores e pensadores como Turgot. Por exemplo, algo de
parecido se passou com o colapso da União Soviética no tempo de Mikhail
Gorbachev ou, se quiserem, com o Estado Novo no tempo de Marcelo Caetano. E esta é mais uma lição que
podemos aprender com Tocqueville.
Muito interessante. Tenho mesmo de ler "Da Democracia na América". Estou convencida de que estamos em maré de mudança, da democracia para outra coisa qualquer, e talvez um retrovisor ajude a perceber o que está para vir.
ResponderEliminarSe bem me lembro, o visionário Tocqueville tem sido bastante referido, neste DdD, pelo José. E se não referiu, eu mesmo tropecei no assunto várias vezes ao procurar entender melhor alguns passsos dos seus artigos, sempre profundos e desafiantes.
EliminarDesta vez tropecei numa interpretação fora da caixa e aqui a menciono, porque parece-me que vai ao encontro de escritos que li, nesta ou noutras publicações a, pelo menos:
Alexandra Abranches
Helena Araújo
Luís Aguiar-Conraria
Mafalda Pratas
Nuno Garoupa
Rita I Carreira
Sandra Maximiano e
Sara Pitola
Livro
"Feminist interpretations of Alexis de Tocqueville", edited by Jill Locke and Eileen Hunt Botting (um autor ou autora por capítulo)
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Description from The Pennsylvania State University Press
This book moves beyond traditional readings of Alexis de Tocqueville (1805–59) and his relevance to contemporary democracy by emphasizing the relationship of his life and work to modern feminist thought. Within the resurgence of political interest in Tocqueville during the past two decades, especially in the United States, there has been significant scholarly attention to the place of gender, race, and colonialism in his work. This is the first edited volume to gather together a range of this creative scholarship. It reveals a tidal shift in the reception history of Tocqueville as a result of his serious engagement by feminist, gender, postcolonial, and critical race theorists.
The volume highlights the expressly normative nature of Tocqueville’s project, thus providing an overdue counterweight to the conventional understanding of Tocquevillean America as an actual place in time and history. By reading Tocqueville alongside the writings of early women’s rights activists, ethnologists, critical race theorists, contemporary feminists, neoconservatives, and his French contemporaries, among others, this book produces a variety of Tocquevilles that unsettles the hegemonic view of his work.
Seen as a philosophical source and a political authority for modern democracies since the publication of the twin volumes of Democracy in America (1835-1840), Tocqueville emerges from this collection as a vital interlocutor for democratic theorists confronting the power relations generated by intersections of gender, sexual, racial, class, ethnic, national, and colonial identities.
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Summary from the Library of Congress
"Explores the relationship of the life and work of Alexis de Tocqueville (1805-1859) to modern feminisms, especially as they pertain to the analysis of gender, sex, sexuality, race, class, ethnicity, nationality, and colonialism"
Obrigado pelos vossos comentários. E o Isidro Dias tem razão, já mencionei várias vezes o Tocqueville nos meus posts, é um autor que acho de facto fascinante, actual e útil para nos ajudar a perceber as tais tendências.
EliminarQue post interessante. Não tinha conhecimento de Tocqueville e da sua obra.
ResponderEliminarFazendo o paralelismo para o Portugal da atualidade não sei se considera que por exemplo este efeito significaria que atualmente uma reimplementação em formas mais suaves da "austeridade" seria muito mais intolerável para o eleitorado do que medidas mais agressivas durante o período da troika?
Obrigado. São situações difíceis de comparar. De qualquer maneira, grande parte do eleitorado, em 2011, percebeu a necessidade da austeridade e de reformas. Parece-me que o perigo da actual política é a imprudência, aumentando o risco a prazo de uma nova bancarrota; se isso acontecer (Deus queira que não, como é evidente)a tolerância do eleitorado com a classe política (em especial para com o governo) é capaz de ser bem mais pequena do que em 2011. Nesse sentido, o discurso de que acabou a austeridade (quando ainda por cima não acabou de facto, foi sobretudo redistribuída) não me parece muito sensato.
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