terça-feira, 28 de março de 2017

Consolos

Quando eu andava no primeiro ano do ciclo, actual quinto ano, tive hepatite, julgo que no terceiro trimestre. Apanhei porque a minha vizinha, que era um ano mais nova do que eu, ficou doente: eu apanhei dela e a minha irmã apanhou de mim umas semanas mais tarde. Durante dias fiquei de cama, julgo que faltei à escola cerca de três semanas. Detesto estar de cama e, para passar o tempo, li o meu livro de inglês, pois esse era o primeiro ano que aprendia inglês. De vez em quando, um senhor de idade, nosso vizinho, vinha visitar-me. Ele costumava ensinar-me Matemática na escola primária porque eu não dava nada para a caixa em contas. Se a escola fosse apenas Língua Portuguesa e Meio Físico e Social, o meu mundo seria muito melhor. Só no oitavo ano é que eu aprendi a gostar de Matemática, mas não é que eu não gostasse, apenas era indiferente àquilo.

A minha mãe falava com as vizinhas acerca da minha doença e do que havia de me dar de comer. Uma delas, uma senhora já de muita idade, viúva, sempre vestida de preto, e que vivia sozinha mais acima na nossa rua, aconselhou a minha mãe a dar-me arroz branco acompanhado de frango temperado só com sal e preparado numa placa grelhadora em cima do fogão a gás. Essas refeições foram das mais consoladoras que alguma vez comi, o que é estranho porque são das coisas mais simples que há. Já no outro dia me tinha recordado delas, mas hoje vi que Portugal está a sofrer um surto de hepatite A e lembrei-me outra vez.

Depois de ficar boa, regressei à escola e tive imediatamente um teste a inglês, uma das coisas que saía no teste era como se perguntava e dava as horas. Tive 84% sem ter estudado para o teste; apenas tinha lido o livro para não morrer de tédio. Foi a segunda nota mais alta e a minha professora deu-nos, a mim e à minha amiga Cláudia, que teve a nota mais alta, uma borracha de cheiro em forma de guarda chuva, verde com um centro cor-de-rosa. Guardei a minha até sair de Portugal; depois os meus pais apoderaram-se do meu quarto e não sei onde foi parar a borrachinha.

A minha professora preferida era sem dúvida a de inglês, que era extremamente criativa: desenhava coisas em ponto grande em cartolina, pintava, recortava, e levava-as para a aula, afixando-as ao quadro com Fun-Tak (uma massa parecida com plasticina, que serve para aderir coisas à parede). Foi assim que aprendemos a identificar comida, roupa, etc., com ela a apontar para os seus desenhos no quadro e a dizer-nos o que as coisas se chamavam. Eu nunca tinha visto Fun-Tak em Portugal, mas decerto que ela a tinha comprado no estrangeiro, pois quando vim para os EUA, toda a gente usava aquilo na universidade para aderir posters e outras coisas à parede e decorar quartos e gabinetes. Em homenagem à minha professora de inglês, também comprei Fun-Tak e colei coisas na parede.

Não me recordo do nome da minha professora, o que acho estranho, mas ela gostava muito de mim e chegou a perguntar à minha mãe se eu tinha aulas de inglês fora da escola. Não tinha; o inglês aparecia naturalmente na minha cabeça, sem que eu fizesse grande esforço para isso. Para mim, o inglês sempre foi um grande refúgio. Muitos anos mais tarde, já depois de eu ter vindo para Houston, um amigo meu ao ouvir-me falar em inglês, disse que tinha sido um erro cósmico eu ter nascido em Portugal; eu pertencia aos EUA.

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