Hobbes acaba o seu Leviatã defendendo
que “uma verdade que não se opõe a nenhum interesse ou prazer recebe bom
acolhimento de todos os homens.” Trata-se de uma afirmação evidente. Todavia,
fora as verdades matemáticas ou racionais, não existe nenhuma verdade que seja
bem acolhida por todos os homens. Hobbes não ignorava essa evidência e adverte
mesmo que até os livros de geometria seriam lançados à fogueira se a igualdade
entre os três ângulos de um triângulo e os dois ângulos de um quadrado fosse contrária “ao direito de um homem à dominação ou ao interesse dos homens que
detêm a dominação”. Aquele que diz uma “verdade de facto” corre um risco quando
essa verdade vai contra os interesses ou prazeres dos que têm os meios para
punir. O risco aumenta quando é o próprio povo que não quer ouvir a verdade e
prefere os “não-factos” ou “factos alternativos” que encaixam melhor numa
narrativa cor-de-rosa.
Como relembra Hannah Arendt num pequeno ensaio
intitulado Verdade e política, publicado em 1968, as relações entre
a política e a verdade são bastante más e ninguém “contou alguma vez a boa fé
no número das virtudes políticas”. Regra geral, o mentiroso é mais convincente
do que aquele que diz a verdade. A verdade constrange (porque é o que é) e o
mentiroso, ao invés, é livre de acomodar os seus «factos» ao seu benefício e
prazer ou às simples esperanças do público. O mentiroso terá inclusive “a
verosimilhança do seu lado; a sua exposição parecerá mais lógica, por assim
dizer, pois que o elemento surpresa – um dos traços mais importantes de todos
os acontecimentos – desapareceu providencialmente.”
Existe hoje a possibilidade de a mentira que nasce
da manipulação moderna dos factos, desconhecida nas épocas anteriores, se
tornar definitiva e completa. Além disso, nas democracias modernas, não basta
enganar os outros, “um engano sem engano de si próprio é quase impossível.”
Dito de outro modo, os mentirosos profissionais têm de se enganar a si próprios
para serem convincentes. Todavia, tarde ou cedo, a realidade vinga-se dos que
ousam desafiá-la e irrompe de surpresa, desfazendo em pedaços os “não factos”. Os factos são mais obstinados do que o poder. À escala planetária, nenhum poder é suficientemente forte para criar uma
“imagem definitivamente mistificadora”. Tal não seria sequer possível com um
governo mundial ou com uma qualquer versão moderna da Pax Romana,
sublinha Arendt. A esperança de vida das mentiras pode quando muito ser
aumentada em regimes totalitários. Nesse caso, ainda que não saibamos o que
poderá a verdade ser, a permanente falsificação da história em função das
circunstâncias mutáveis é um sinal mais do que evidente do carácter mentiroso
de “todas as afirmações publicadas sobre o mundo factual.”
A longo prazo, as lavagens ao cérebro e as
falsificações permanentes dos factos não levam ninguém a aceitar as mentiras
como verdades, mas levam a que o “sentido através do qual nos orientamos no
mundo real – e a categoria da verdade relativamente à falsidade conta-se entre
os recursos mentais para prosseguir esse objetivo – fique destruído”. E para
esse mal não existe, infelizmente, remédio, avisa Arendt.
As possibilidades da mentira são ilimitadas porque
os assuntos poderiam sempre ter acontecido de forma diferente. A "verdade
de facto" é uma, mas o reverso da verdade tem mil figuras. A persuasão e a
violência podem destruir a verdade, mas não podem substituí-la. A mentira, dadas as suas múltiplas potencialidades, provoca instabilidade, estremecimento, vacilação. Talvez por isso nasceram do próprio domínio político instituições independentes como os
tribunais e as universidades, donde saem, por vezes, verdades inoportunas. E,
voltando ao início, estas instituições, como qualquer refúgio da verdade, estão
expostas a perigos. De qualquer maneira, a sua simples existência reforça consideravelmente a possibilidade de a verdade
prevalecer em público.
Supostamente, o aluno da Escola de de Pitágoras que provou que raiz de 2 não podia ser um número racional, contrariando a crença da época que todos os números eram racionais, foi condenado à morte. Serve de ilustração para o primeiro parágrafo do teu texto.
ResponderEliminarTrump ajoelhou perante o establishment político mediático de Washington. Ao ordenar o bombardeamento das forças que combatem o fundamentalismo islâmico, matando também crianças inocentes, fazendo exactamente o oposto do programa que levou a votos e aderindo ao programa do adversário que havia vencido, invocando alegações para as quais não mostrou evidencias, nem com tempo e meios suficientes para as poder materializar, Trump enxovalhou a democracia americana e promoveu a farsa e a mentira como sua prática política principal. Ao mesmo tempo, acendeu uma candeia para iluminar o rosto dos cobardes que, na América e na Europa, já conhecendo o padrão de anteriores campanhas, no Iraque e na Líbia, de consequências catastróficas, aplaudem tão monstruosa imoralidade.
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