Em 1971, os EUA tiveram o seu primeiro défice comercial no
século XX. As industrias japonesas e europeias haviam recuperado e passaram a
concorrer directamente com os americanos em sectores como o aço e os têxteis. A
seguir, viria o choque petrolífero de 1973. Era a machadada final no
liberalismo do new deal, iniciado nos anos 30 na administração de Roosevelt, e
que durante cerca de 40 anos constituiu o consenso dominante no establishment
americano. Os anos 70 foram marcados pela estagflação (estagnação + inflação).
As receitas keynesianas da procura deixaram de funcionar. A solução parecia passar agora por uma “economia pelo lado
da oferta”, assim inicialmente designada, e posteriormente cunhada de “neoliberalismo”
por politólogos americanos de esquerda. Este novo consenso, que se estava então a desenhar, nasceu no seio dos republicanos, onde os grupos de negócios
encontraram sempre maior acolhimento. Com o tempo, os democratas foram
interiorizando e aplicando as novas regras. Desregulação financeira,
liberalização das leis do trabalho, enfraquecimento dos sindicatos, acordos de
comércio livre, imigração legal e ilegal. Basta pensar que na maioria das eleições presidenciais americanas das últimas décadas as diferenças entre republicanos e democratas residiram apenas em questões como o aborto, o controlo das armas, impostos mais ou menos progressivos, mais ou menos despesas sociais, e pouco mais. Reagan, recorrendo a uma metáfora de
Kennedy, dizia que “uma maré cheia erguerá todos os barcos”. Na Europa, a
partir dos anos 80, com Thatcher, foram dados passos no mesmo sentido. A
inflação elevada e o crescimento anémico pareciam não deixar alternativas. A
inversão de política de Mitterrand a partir de 1982 foi tão ou mais decisiva
na viragem europeia do que as políticas de Thatcher. O consenso
social-democrata do pós-guerra, partilhado, por essa Europa fora, pelos
partidos do centro-direita e centro-esquerda, começou a desmoronar-se.
O “neoliberalismo” funcionou até certo ponto. Sem nunca
atingir as taxas dos anos 50 e 60, o crescimento arrebitou. Todavia, no início
dos anos 90, era já evidente que a maré tinha erguido os barcos de forma muito
desigual. Nos EUA e na Europa, a desigualdade económica e política aumentou.
Não por acaso os partidos populistas tiveram um grande impulso nessa época.
Nos EUA, Ross Perot, um multimilionário texano, obteve cerca de 20% nas eleições
presidenciais de 1992. 25 anos depois, Trump limitou-se a pegar nas bandeiras
de Perot, embora utilizando um estilo muito mais tonitruante e intolerante. Trump e Perot
consideram os acordos de comércio livre, como a NAFTA, desastrosos para milhões
de americanos. Acham imoral que as empresas americanas abram fábricas noutros
países e depois enviem os produtos para os EUA sem pagarem altos impostos. Os
imigrantes, legais e ilegais, são acusados de roubar empregos, baixar os
salários e aumentar as despesas sociais. E muitos americanos acham de facto que
andam a pagar impostos para sustentar as despesas sociais com imigrantes que se
aproveitam do sistema.
Na Europa, o problema da imigração afecta de igual modo os
países mais ricos. Os argumentos dos partidos populistas são mais ou menos os
mesmos de Trump. Não há condições para absorver toda esta gente - dizem. Em
países como a Dinamarca, o problema com a imigração nem sequer é económico, até
porque a taxa de desemprego ronda os 5%. O problema é cultural e moral. Por
exemplo, regras como a atribuição de um subsídio de desemprego de 4 anos pagando
90% do anterior salário só são possíveis numa cultura de trabalho e confiança,
partindo do pressuposto que as pessoas não se vão aproveitar deste tipo de “generosidade”.
A imigração em massa é vista como uma ameaça a um sistema baseado na confiança.
O euro veio complicar ainda mais coisas. Desenhado com os
pés e de forma irresponsável, sem um governo central ou uma política orçamental
comum, o único mecanismo de compensação para os países com maiores dificuldades económicas (os do sul) é a emigração para os países mais ricos da Europa. É
desta forma que os populistas de direita dos países do norte da Europa ligam os
dois fenómenos: imigração + União Europeia/zona euro.
Grande parte da população dos países mais ricos vê a
imigração (legal ou ilegal) como um problema importante. Por exemplo, 70% dos
franceses querem uma solução para os estrangeiros e o islão, apesar 70% também
não querer a Frente Nacional no poder. A imigração, um elemento fundamental do
pacote “neoliberal” – curiosamente, este pormenor costuma ser omitido -, favorece as
empresas e ameaça, de facto, os trabalhadores com menores qualificações. Embora
Marine Le Pen tente descolar esses rótulos, há com certeza carradas de militantes
e votantes racistas e xenófobos na Frente Nacional – na verdade, são até os
mais activos. Mas é um erro crasso reduzir o problema da imigração a uma
questão de racismo e xenofobia, como faz a classe bem-pensante. A entrada de muitas
centenas de milhares de pessoas por ano na Europa coloca problemas. Não vale a
pena iludir esse facto. As inquietações de largas faixas da população não são
absurdas. Ignorá-las é entregar de bandeja milhões de votos a partidos como a
Frente Nacional, que oferecem soluções, por vezes, radicais e assustadoras. O problema
é que, por enquanto, são as únicas soluções em cima da mesa.
«A solução parecia passar agora por uma “economia pelo lado da oferta”, assim inicialmente designada, e posteriormente cunhada de “neoliberalismo” por politólogos americanos de esquerda.»
ResponderEliminarIsto é só um detalhe, mas o uso de "neoliberalismo" com esse significado não é mais um fenómeno europeu e sul-americano? A ideia que eu tenho é que aquilo a que nos EUA tradicionalmente se chama "neoliberalismo" são as políticas do Bill Clinton, correspondentes ao que na Europa na mesma altura se chamava "terceira via" - uma combinação de liberalização da maior parte da economia (nomeadamente do comércio internacional) com um ligeiro aumento das politicas de redistribuição via fiscal.
"Sem nunca atingir as taxas dos anos 50 e 60, o crescimento arrebitou. Todavia, no início dos anos 90, era já evidente que a maré tinha erguido os barcos de forma muito desigual."
Arrebitou mesmo? A ideia que eu tenho (mas não vou apostar a minha vida nisso) é de que, pelo menos nos EUA, as diferenças de crescimento económico entre os anos 70 e 80 praticamente resumiram-se às diferenças derivados do ciclo económico (do desemprego estar a aumentar nos 70 e a diminuir nos 80), e que controlando para o nivel de desemprego, o crescimento (potencial, digamos) dos anos 80 foi praticamente idêntico ao dos 70 (eu li isto num livro do Krugman - admito que não seja o analista mais isento e imparcial).
O liberalismo na Europa é associado à clássica economia de mercado livre, nos EUA é associado ao new deal; todavia, o neoliberalismo tem mais ou menos o mesmo significado em ambos os lados. A terceira via é, no fundo, a adaptação dos partidos de centro-esquerda ao novo consenso introduzido pelos republicanos nos EUA. Nos EUA, começou com Bill Clinton e na Europa começou, na realidade, com a inversão de política do socialista Mitterrand em 1982. Mais tarde, no final dos anos 90, é que aparecem o Tony Blair e o Gerhard Schröder. De facto, o crescimento só começa a arrebitar no final dos anos 80. Por exemplo, Thatcher ganhou as eleições de 1983 com a economia britânica em péssimo estado - contrariando, aliás, uma vez mais, as teses simplistas que tentam explicar os resultados eleitorais com o dinheiro que as pessoas têm a mais ou a menos na carteira.
Eliminar"todavia, o neoliberalismo tem mais ou menos o mesmo significado em ambos os lados."
EliminarPelo menos há uns anos atrás eu costumava assistir a equivocos em forums/blogs anglófonos, em que os participantes ingleses falavam de "neoliberal" no sentido em que estamos habituados, e os americanos reagiam como se se estivesse a falar de uma distinção obscura sobre as tendências internas do Partido Democrático; e o Brad DeLong tem alguns posts no blogue dele classificando-se como "neoliberal" (de certeza que não é no sentido Reagan/Thatcher). Mas hoje em dia realmente o sentido internacional já deve ser dominante mesmo nos EUA (até porque mesmo "liberal" no sentido em que nos últimos 80 anos foi usado nos EUA já não se usa muito, sendo substituído por "progressive")
A referencia a vitória eleitoral de Thatcher em 1983 e ao contexto económico ignora um factor importante - a guerra das Malvinas.
ResponderEliminarTem toda a razão, esse factor foi mais determinante nas decisões dos eleitores do que a economia.
Eliminar