1. Não
fosse o mundo aquilo que é e não chamaríamos ninguém. Para nada e para lado
nenhum.
O mundo tal como é permite que se chame alguém e que se chame para
algum lado, mas e se não fosse assim, se não tivesse ondes e quandos, e, pior,
se não tivesse assuntos. Pois quando se chama chama-se para alguma coisa e
fiquemo-nos pela palavra assuntos para isso. Isso para que se chama. Esqueçamos
o espaço e o tempo de que já cansa falar. Fiquemo-nos só pelos assuntos, e já
não ficaremos mal instalados. Pelo menos, não ficaremos desequilibrados, porque
assuntos há muitos e nunca se acumulariam esguios como um filete esguio de
lâmpada. Ficaremos confortáveis, prometo. Esquecer, ficar por, há que começar
por algum lado o austero processo com que, contrariando o conforto,
atravessamos a massa sem fim à vista dos assuntos. Essa massa temos que
atravessá-la. Se ela fosse uma montanha de papéis escrupulosamente arrumados,
séculos e séculos de escrivães e arquivistas desfeitos em pó no meio de páginas
e páginas de narrações, exposições notícias, actas relatando aquilo que o mundo
é, teríamos que atirá-los pelos ares, teríamos que ser impiedosos, teríamos que
ser bárbaros, teríamos que afastar com braços musculados as figuras pretas
plangitivas que se nos agarrariam às roupas tentando travar o ultraje à memória
dos séculos e séculos de escrivães e arquivistas, aqueles parentes destes.
Correríamos o risco de encontrar um destes ainda não desfeito em pó e disposto
a deixar-se atravessar pelas nossas espadas.
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