A minha avó morreu exactamente um mês antes de eu fazer 10 anos. Como era uma pessoa a quem eu era muito chegada, o meu pai deve ter tido um pequeno ataque de ansiedade por minha causa e os meus pais mandaram-me com a minha irmã para casa de umas primas da minha mãe, pois não queriam que eu estivesse exposta ao luto.
Só para verem o quão chegada eu era à minha avó, basta saberem que a minha primeira grande discussão com os meus pais, quando eu tinha uns sete anos, foi eu a argumentar que eu não era filha da minha mãe: dizia-lhes eu, com toda a veemência que se pode ter aos 7 anos e provavelmente com os olhos muito arregalados, prestes a engolir o mundo, como anos mais tarde me diria a minha mãe que eu faço quando discuto com alguém, que a minha avó é que era a minha mãe pois era a pessoa que cuidava de mim. Eu era filha da avó; não era filha da mãe...
Coitada da minha mãe; era um bocado injusto ter ouvido aquilo porque a minha avó adorava-me tanto que basicamente me tirou à minha mãe e a minha mãe, que andava tão stressada e não sabia para onde se virar, entre trabalho, marido, mãe, filha, e doença, não se intrometeu entre mim e a minha avó. Nesse luto, talvez ir para casa das primas tivesse ajudado a minha mãe também, pois durante alguns dias não precisava de se preocupar com as filhas, enquanto vivia o luto da perda da sua mãe. Não sei bem o que ela sentiu, mas agora que penso nisso, tenho pena de não lhe ter perguntado como é que foi o luto dela. Depois das pessoas morrerem, há tantas perguntas que aparecem e que ficam por responder. Também nunca lhe perguntei a sua cor preferida, mas acho que devia ser azul.
No ano a seguir, morreu o meu avô, mas eu não era a preferida dele e ele nem era muito próximo de mim, se bem que tivesse maior afinidade com a minha irmã, só que ela era uma criança muito mais feliz do que a macambúzia da Rita, que parecia viver um drama constante, separada do mundo real, em que as pessoas frequentemente lhe diziam que era triste e aborrecida, para além da banalidade de ter olhos e cabelos castanhos. (Os adultos dizem cada parvoíce às crianças que até as crianças percebem que os adultos são parvos.)
Apesar de morar connosco desde que ficara incapacitado de viver sozinho, os meus pais acharam que a morte do meu avô não me afligiria muito e pude ficar em casa e viver o luto da família, que consistia em a minha mãe vestir preto por uns dias e não se ligar a televisão, nem se tocar música. Lembro-me de a minha mãe e as vizinhas conversarem acerca do número de dias que era adequado para se observar o luto, mas não me recordo da resposta.
Os meus pais enganaram-se. Depois do meu avô morrer, ganhei uma fobia temporária e durante alguns anos não consegui tocar em nada que pertencia ao meu avô ou à minha avó. Tinha medo dos objectos das pessoas mortas, especialmente do chapéu que o meu avô tinha usado. Por vezes, ficava parada a olhar para as coisas e a pensar, com um ligeiro nó na garganta, que não lhes podia tocar. Nunca disse a ninguém na altura que tinha esse medo. Percebi desde cedo, que não convém partilhar os nossos medos com os outros, especialmente quando somos pequenos e as pessoas grandes parecem tão complicadas e não nos oferecem grandes evidências de saberem o que estão a fazer.
É muito difícil controlar a nossa reacção a tragédias porque não obedece à lógica e muitas vezes ilustram mais os nossos medos do que outra coisa. O que é a reacção normal? Às vezes nos funerais, vê-se as pessoas a chorar e a falar com os mortos. Isso aconteceu no funeral da minha mãe, em que uma das suas melhores amigas ficou muito emocionada e, a certa altura, encontrei-me entre o caixão da minha mãe e a amiga a consolá-la e achei um bocado estranho estranho estar ali a vê-la ter uma reacção que eu nunca teria. Muitas vezes não sei como reagir, mas tenho medo de reagir mal e então fico num estado de suspensão, à espera que as coisas mudem até me sentir mais confortável e à vontade para reagir.
No dia do enterro, a minha mãe estava no meio da sala, no mesmo sítio onde estivera a mãe dela. Eu lembro-me de estar ali com a minha avó e de pedir à minha mãe para me deixar ver a cara da minha avó. Mas com a minha mãe não consegui olhar para a sua cara; depois do enterro pensei que talvez tivesse sido um erro. Talvez eu aos nove anos, com a minha avó, que foi a minha primeira perda e o meu primeiro luto, tivesse tido uma reacção melhor do que a que tive 24 anos mais tarde...
Com a cobertura da tragédia de Pedrógão Grande, anda tudo com os nervos em franja, e não há reacções que agradem a toda a gente; é como se o país estivesse numa competição de luto, em que cada um acha que sofre mais e melhor a tragédia do que o outro. Talvez fosse bom que as pessoas pudessem ir para casa de uns primos espairecer, ou desligar a TV, os computadores, e telemóveis por uns dias. Será que não há uma regra de etiqueta que se aplique ao luto moderno?
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