[Começo por dizer que vou meter a foice em seara alheia e, como tal, peço já desculpa por algum eventual erro ou falta de rigor. No essencial, julgo que os meus argumentos não sairão afectados por tal.]
Este fim-de-semana, o Expresso publicou a entrevista que fez a António Gentil Martins. Havia incêndios em Alijó e Mangualde, mas foram as declarações do médico a pôr o país on fire. Aqui eu devo já esclarecer que não me passaria pela cabeça silenciar o homem. Reconheço-lhe todo o direito a ter a sua opinião e reconheço-me o direito a achar essa opinião abjecta. Como agora sempre acontece, o debate fez-se em trincheiras e cheio de rotulagens imediatas.
Este fim-de-semana, o Expresso publicou a entrevista que fez a António Gentil Martins. Havia incêndios em Alijó e Mangualde, mas foram as declarações do médico a pôr o país on fire. Aqui eu devo já esclarecer que não me passaria pela cabeça silenciar o homem. Reconheço-lhe todo o direito a ter a sua opinião e reconheço-me o direito a achar essa opinião abjecta. Como agora sempre acontece, o debate fez-se em trincheiras e cheio de rotulagens imediatas.
Gostando eu de ser um bocadinho do contra, vou pegar numa citação que não tenho vista referida. À pergunta «É católico praticante?», responde Gentil Martins «Sou. Vou à missa todos os domingos e dias santos». E aí temos um entendimento do que é ser-se católico: é ir à Missa. Pronto, assim faz mais sentido. Eu fico sempre muito surpreendida quando vejo pessoas que se autoproclamam cristãs ser sectárias. Das minhas longíquas sessões de catequese, guardo João 8:1-11. É possível que eu tenha dado ao episódio do não apedrejamento da mulher adúltera uma interpretação demasiado livre, mas encontro ali uma enorme mensagem de tolerância. Claro que, quando ser católico é cumprir o calendário ritualístico, a coisa muda de figura. Aí abre-se espaço para o julgarás.
E que julga António Gentil Martins? Segundo ele, a homossexualidade é uma anomalia. Uma pessoa vai ao dicionário e vê que anomalia significa «o que se desvia da norma, da generalidade»; é sinónimo de «irregularidade». Posto em termos estatísticos, nada a opor. Ser homossexual é uma anomalia. Ter gémeos é uma anomalia. Ser caucasiano é uma anomalia. Ter um QI de 120 na escala de Wechsler é uma anomalia. Já afirmar que anomalia foi utilizada na referida acepção é coisa de quem tem QI inferior a 90 ou não está de boa-fé. Porque as palavras foram estas: «Não vou tratar mal uma pessoa porque é homossexual, mas não aceito promovê-la. Se me perguntam se é correcto? Acho que não. É uma anomalia, é um desvio de personalidade.» Médias e probabilidades?! Nãaaaa. Moral. O que Gentil Martins quis dizer - parece-me claro - é que é uma «deformidade, monstruosidade», sentido que também surge no dicionário. Aliás, ele não quis dizer, ele disse-o; afirmou que não está correcto e que é um desvio de personalidade.
Ora, a 17 de Maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da lista de doenças. Até então, tinha sido considerada um distúrbio mental, o tal desvio de personalidade. Que um médico, entrevistado na qualidade de médico, perpetue uma noção de 1952 que não encontrou evidência empírica a seu favor parece-me ser caso a levar à Ordem dos Médicos. Seria o mesmo se tivesse defendido a lobotomia. E nada disto tem que ver com coarctar a sua liberdade de expressão. Só, eventualmente, a sua liberdade de ser médico: compete à Ordem avaliar.
Logicamente, o homem, o católico, tem direito às suas concepções morais. Mas olhemos para a sequência da entrevista. Observam-lhe que casou tarde para a época. E ele explica que «Queria escolher bem. Tem de existir uma similitude de ideias e aquela atração que não sabemos porque aparece. Sentir amor por outra pessoa.» Até aqui, totalmente de acordo. Só não percebo o acrescento «Sou totalmente contra os homossexuais, lamento imenso.» E, por isso, a pergunta impôs-se: «Duas pessoas do mesmo sexo não podem amar-se?» Porque, de facto, aquela sequência sugere que a homossexualidade não é uma questão de amor, de afecto, com tudo o que o amor envolve. E a resposta, que inclui a parte da anomalia, começa com «Ouçam, é uma coisa simples: o mundo tinha acabado. Para que o mundo exista tem de haver homens e mulheres.» Não é exactamente o mundo, é mais a espécie humana, mas, certo, não percamos o raciocínio com questões que podem ser matéria de estilo. E vamos lá aos argumentos...
Em primeiro lugar, se a homossexualidade é a tal anomalia estatística, a sua ocorrência em nada ameaça a sobrevivência do Homem. Se a preocupação é essa, talvez possam libertar o pessoal eclesiástico do dever de castidade, porque aquilo de ter de haver homens e mulheres só funciona se eles puderem copular. O que me leva ao segundo ponto: o imperativo biológico não precisa do amor romântico para nada (eu acho muito estranho ser necessário notar isto a um médico, mas teve de ser). Se nós achamos (e eu acho) que o Homem é mais que pura biologia e que o sexo vai além da reprodução, o argumento contranatura deixa de colher. Um bocadinho de coerência exige-se, por respeito ao ser biologicamente determinado a pensar que somos. Repudiamos um casamento heterossexual em que só um dos elementos é infértil e o sabe? Não, pois não? Então como pode ser isso argumento contra a homossexualidade? Eu percebo que a religião, dado o seu papel normalizador e perpetuador da sociedade, o tivesse considerado um pecado quando a concepção não tinha alternativa médica. Agora que ela existe, a homossexualidade que não se tenta conformar a um padrão heterossexual não é nenhum óbice ao aumento da natalidade. Curiosamente, os que se mostram tão preocupados com a extinção do mundo decorrente de relações afectivas que não podem biologicamente gerar filhos são os mesmos que querem impedir estas pessoas de ser pais e mães com recurso a técnicas de reprodução assistida. Algo aqui me parece inconsistente. Mas pode ser uma anomalia cognitiva minha...
Adenda: Depois da polémica, Gentil Martins enviou uma carta ao Expresso. É caso para dizer que é pior o esclarecimento que a entrevista.
Que ele nunca desejou a celeuma, nós podemos adivinhar. Provavelmente, teria preferido uma ovação, elogios públicos e a subscrição total das suas opiniões. Se não previu a reacção, enfim... Ajuda naquela parte de quem o defende usando a idade como desculpa. E, sim, nós percebemos (estou a ser optimista, quiçá) que não eram os méritos desportivos de Cristiano Ronaldo a estar em causa.
Sobre nunca ter querido ofender a mãe de Ronaldo. Ora bem... Alguém escreve «O Ronaldo é um excelente atleta, tem imenso mérito, mas é um estupor moral, não pode ser exemplo para ninguém. Toda a criança tem direito a ter mãe. Mais: penso que uma das grandes culpadas disto é a mãe dele. Aquela senhora não lhe deu educação nenhuma.» e não quis ser ofensivo??? A sério???!!! Se eu disser a Gentil Martins que um dos filhos dele é um estupor moral e que a culpa é dele, que foi, como confessa na entrevista, um pai «mais do que ausente», ele não vai ficar ofendido? Tenha dó! Até as pessoas que têm um QI não anómalo são capazes de ver isto.
E, caro Gentil Martins, os homossexuais não sofrem com a homossexualidade per se, sofrem com a discriminação de que são alvo, plasmada em entrevistas como a sua.
Que bem haja por este excelente texto.
ResponderEliminar"Curiosamente, os que se mostram tão preocupados com a extinção do mundo decorrente de relações afectivas que não podem biologicamente gerar filhos são os mesmos que querem impedir estas pessoas de ser pais e mães com recurso a técnicas de reprodução assistida."
ResponderEliminarO céu é o limite! Fábricas? Fantástico!
Essa é uma questão que terá de colocar a quem vê os filhos como meros produtos biológicos destinados a propalar a espécie humana. Eu tenho outra perspectiva (eventualmente, anómala), que privilegia a componente afectiva.
EliminarParabéns por uma foice tão bem metida! Um texto exemplar!
ResponderEliminarParabéns pela foice tão bem metida! Um texto irrepreensível.
ResponderEliminarNa verdade, acho que nem o céu é o limite, que o Homem já foi à Lua. Algo que também é muito contranatura.
ResponderEliminarLobotomia é o que o Sr Dr Gentil Martins, necessita!
ResponderEliminarEm bom rigor, a pergunta foi se era "católico praticante", e não apenas se era católico, e daí ele ter dito que ia à missa.
ResponderEliminarNão precisa de acrescentar qualquer rigor, porque a pergunta está bem citada por mim. E então?! Qual é o seu contra-argumento?! Um praticante é aquele que cumpre os deveres religiosos (https://www.priberam.pt/dlpo/praticante). Que esses deveres sejam vistos apenas como o cumprimento de ritos e não como o seguir certos valores é uma forma de entender o que é ser-se católico. Que não é exclusiva de Gentil Martins, é até muito comum. Mas no meu texto não sugiro existir em Gentil Martins uma idiossincrasia. Esta é, aliás, minha, que também admito fazer interpretações demasiado livres de episódios bíblicos.
EliminarEmbora Gentil Martins tenha referido apenas os RITUAIS que costuma cumprir percebe-se bem, no conjunto da sua entrevista, que o seu pensamento está colado a RITOS, não a rituais - ele, possivelmente, nem sequer sabe a diferença.
EliminarEu até concordo com o que diz, Sara Pitola. O facto é que, no linguajar corrente, e no jornalístico também, "católico praticante" é aquele que vai à missa, por mais redutor que isso seja. Talvez por, na mente dos que usam a expressão, quem se dá ao trabalho de ir à missa tem de ser mesmo católico. Decerto foi esse o intuito da pergunta, e daí a resposta.
EliminarÉ bem verdade que a Sara cita bem a pergunta "É católico praticante?"
EliminarPorém quando analisa a resposta começa por "E aí temos um entendimento do que é ser-se católico: é ir à Missa"
E aí perdeu o rigor, pois justapõe a resposta a uma pergunta diferente ("o que é ser católico praticante") à definição de algo que lhe dá jeito ("ser católico"), para fazer o seu ponto, colocando a proposição como se tivesse sido expressa por GM.
Basta colocar a pergunta completa, incluindo o "praticante", para o resto do parágrafo perder força: "E aí temos um entendimento do que é ser-se católico praticante: é ir à Missa"
Acresce que normalmente quem define quem é "praticante" de determinada religião (ou actividade em geral) tende a ser a organização terrena que professa e organiza a mesma. No caso vertente, a igreja católica, a que GM assume pertencer. Parece normal que responda de acordo com aquilo que a igreja a que pertence define como elemento distintivo entre um "praticante" e um "não praticante": ir à missa nos dias obrigatórios (e do que me lembro mais uns pozinhos como confessar-se regularmente, suponho)
Uma entusiasta da blogoesfera (Zazie) uma dia escreveu qualquer coisa como "Havemos de chegar ao dia em que se adoptam animais e se compram crianças". O progresso chega mais rápido do que aquilo que imaginava. Venham as máquinas, mil vezes...
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